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A CASA DO PORQUÊ


A CASA DO PORQUÊ

A Páscoa passou, mas a normalidade não voltou: continuavam em estado de emergência. O sábado passou sem grandes novidades. Era dia de limpeza da casa e eles esmeraram-se. Os filhos tiveram de levantar-se cedo, para que os quartos pudessem ser arrumados. Por volta das treze horas, Pedro foi arranjar o almoço. O peixe ao sal era uma das suas especialidades. O robalo pesava um quilo e seiscentas gramas, já depois de limpo e tinha um aspeto fantástico. Quando saíram da mesa já eram dezasseis horas. Foram todos para o sofá. O filho mais novo ligou a televisão ao computador e viram um filme, todos juntos. O jantar foi restos e depois Emília e Pedro dedicaram-se à leitura, sentados em frente ao ecrã negro da televisão. Os filhos foram cada um para o seu quarto. Emília dormiu muito bem e no domingo acordou bem-disposta. Chegou-se a Pedro, pela manhã e fizeram amor. Depois de saciados, foram para o banho juntos e ela encheu-se de coragem e perguntou.
«O que achas do meu corpo?»
«Tu tens um corpo lindíssimo!»
 «Não levas nada a sério.»
«Como assim? Tu tens um corpo lindíssimo.»
«Como podes dizer que o meu corpo é lindíssimo, quando eu ganhei peso e as minhas formas perderam os contornos e o vigor de outrora.»
«Eu não disse que tinhas o corpo de uma mulher de vinte anos. Tens o corpo de uma de cinquenta, que é a tua idade. A verdade é que tens o corpo de uma mulher bem mais jovem. Existem mulheres com quarenta anos e menos, que dariam tudo para ter o teu corpo.»
«Lá estás tu com a mania de agradar!» Disse Emília de forma bruta.
Apesar da conversa ter sido interrompida ela não ficou com aquele ar duro que lhe era tão típico, neste tipo de situações. Pedro olhou para ela de soslaio intrigado. Emília estava com um ar pensativo. Parecia que a sua mente estava ou muito longe dali ou obcecada por um qualquer pensamento. O almoço ficou por conta dela enquanto Pedro se dedicava à leitura de uns quantos artigos técnicos: era um viciado em leitura. Depois do almoço Emília foi até à varanda sentir o prazer da fumaça. Quando o cigarro se esgotou deixou-se estar por ali. Estava uma tarde muito agradável e o sol de Abril aquecia-lhe o corpo, dando-lhe uma sensação de conforto muito agradável. Ao longe conseguia ouvir uma ou outra criança, que tinha saído à rua para o seu passeio higiénico. Noutros tempos, tempos sem pandemia, a ruas estariam cheias de ruídos, de pessoas, carros, aviões e outros, mas os tempos eram de confinamento. Havia no ar um silêncio estranho que convidada ao recolhimento. Ela fechou os olhos e vieram-lhe à mente as palavras do marido. Ele nunca era desagradável e era notório que a amava, por isso tinha dificuldade em ajuizar o quanto de verdade existiria na sua afirmação. O pensamento voava de imagem para imagem, à velocidade do pensamento… Recordou-se de quando tinha vinte e cinco anos e conheceu o Pedro. A imagem da sua silhueta elegante, com os seios eretos e bem definidos e o corpo tonificado, bailou na sua frente de forma provocadora.
«Merda!» Disse em voz alta.
«Às vezes é isso que acontece.» Disse D. Teresa.
Fazia algum tempo que tinha chegado à varanda, mas não quis interromper as divagações de Emília. Ficou a observá-la como se pudesse ver o que lhe ia na alma. Emília assustou-se, pois julgava estar completamente só.
«Boa tarde!» Cumprimentou a anciã, com um sorriso.
«Olá D. Teresa.»
«Dez cêntimos pelos seus pensamentos.» Disse a anciã.
«Não pode ser, neste caso penso que valem muito mais!»
«Pensando em coisas sérias, hem!»
Emília relatou a conversa da manhã com o marido e ficou à espera. A anciã olhou para ela com carinho e ficou assim por alguns instantes.
«A Emília está mesmo convencida disso? Ou seja, mesmo que a opinião do seu marido esteja influenciada pelo amor que sente por si, isso parece-lhe o mais relevante?»
«Sim isso torna a opinião de parcial.»
«Mas ainda que a opinião possa ser parcial isso não faz dela menos verdadeira, não é verdade?»
«Se ele disser isso apenas porque gosta de mim e não me quer magoar, então não posso considerar a opinião como correspondendo efetivamente à verdade dos factos.»
«Isso seria assumir que ele está a mentir.»
Emília ficou calada por alguns instantes, refletido sobre as implicações do seu raciocínio.
«Bom, não iria tão longe, mas, no limite, diria que sim.»
«Isso resolve-se facilmente. Se ele estiver a mentir isso vai transparecer no seu comportamento. Ele age consigo como se não gostasse do seu corpo, apesar de dizer que ele é bonito?»
«Credo! Ele está sempre em cima de mim. Quer-me muitas mais vezes do que eu a ele e não se cansa de me elogiar o corpo. A atitude dele é consistente com as palavras.»
«Então como pode assumir que ele está a mentir, quando diz que o seu corpo é bonito?»
«Bom, se calhar ele não está a mentir, mas sabe como diz o ditado: Quem feio ama bonito lhe parece.»
«Isso não faz qualquer sentido. Esse ditado até se pode aplicar ao momento em que as pessoas se apaixonam, ou seja, nos primeiros tempos de namoro, mas não depois de decorridos mais de vinte anos de casamento. Um homem que, decorrido esse tempo, pensa como o Pedro, não está e emitir uma opinião influenciada pela paixão ou pelo amor. Está a dizer o que verdadeiramente pensa.»
Ficaram as duas em silêncio. Emília refletia nas palavras da vizinha. Como de costume elas faziam todo o sentido, mas por mais contraditório que isso pudesse ser, algo dentro dela rejeitava as mesmas. Era como se a sua mente entendesse a sua razoabilidade, mas o seu coração duvidasse delas. Acabou por ser a anciã que interrompeu o silêncio.
«A Emília está a passar por um processo idêntico ao de um outra amiga minha. A razão por que duvida das palavras de Pedro não está, nem no teor das palavras, nem no Pedro, está dentro de si.»
Emília olhou para ela estupefacta.
«Isso quer dizer que a culpada sou eu?»
«Não se trata de encontrar culpados. Esse é um sentimento negativo que nunca deve ser utilizado no processo de busca do porquê. Trata-se apenas e tão somente, de encontrar a origem. Perceber onde está o verdadeiro porquê.»
Emília olhou para ela e assentiu com a cabeça. Fazia sentido.
«Então devo questionar-me sobre o que me leva a pensar que as afirmações do Pedro não são verdadeiras?»
«Esse é o caminho. Confrontar cada obstáculo com uma pergunta. A resposta a cada uma dessas perguntas, que surge ao longo do processo, é como a descoberta de pequenos porquês, que surgem no caminho do verdadeiro porquê.»
«Isso é um bocadinho confuso.»
A anciã parou por alguns instantes e buscou na sua mente uma forma de exemplificar aquilo que queria dizer.
«Imagine que pretende desenterrar um pedregulho, que está coberto de terra, no qual a sua enxada bateu ao cavar. Primeiro retira-se a terra que cobre o pedregulho, mas eventualmente este não mostra de imediato todos os seus contornos, por estar profundamente enterrado. À medida que se vai escavando à volta, vai-se descobrindo pequenas pedras que, ao ser retiradas, vão deixando à vista novas pequenas parcelas dos contornos do pedregulho, que se pretende desenterrar. O pedregulho é o grande porquê e as pequenas pedras são os tais pequenos porquês. Ficou mais claro agora?»
Emília acenou afirmativamente. Entretanto, a tarde esfumou-se e a noite já anunciava a sua presença.
«Meu Deus! Não dei conta do tempo passar. Os meus homens já devem estar cheios de fome. Até amanhã D. Teresa.»
«Até amanhã.»
Emília entrou em casa um pouco constrangida e à espera de ouvir um reparo do marido ou dos filhos.
«Desculpem, demorei um pouco mais, mas já vou tratar do jantar.»
«Não te preocupes meu amor, está tudo tratado.»
«Já puseram a mesa? O que é o jantar?» Perguntou Emília, agradavelmente surpreendida.
«Vamos fazer um jantar de sopa e frios. Fiz uma salada fria de legumes, temos sopa e vários enchidos.»
Até parecia que eles tinham adivinhado o que lhe apetecia. Sentou-se no sofá, ao lado do marido e deu-lhe um beijo na face. Ele segurou-lhe o rosto, com carinho e beijou-a com paixão.
«Então, vamos comer?» Perguntou Emília.
«Vai chamar os rapazes enquanto eu abro o vinho.»
Todos ajudaram a levar a comida para a mesa e sentaram-se a jantar. A família estava reunida e unida. O resto da noite decorreu em grande harmonia e quando foram para a cama entregaram-se um ao outro, prolongando o momento apaixonado que se tinha seguido ao jantar. Os dados sobre a pandemia mostravam grandes melhorias. Portugal teve muita sorte e conseguiu um bom desempenho, controlando o impacto da pandemia no sistema de saúde. Apesar disso, o estado de emergência foi prolongado por mais quinze dias e a família continuou confinada em casa, em regime de teletrabalho. Isso permitiu a Emília ter pequenas conversas com D. Teresa, ao longo da semana. Na quarta feira Emília encerrou o expediente mais cedo e às dezoito horas estava na varanda à conversa com a anciã. O tempo tinha aquecido e estava um fim de tarde muito agradável. Os passarinhos chilreavam nas árvores da avenida o que era algo raro, dado estarem dentro da cidade. O insólito não tinha a ver com o facto dos passarinhos se manifestarem, mas sim com a facilidade e intensidade com que o chilreio era ouvido. Parecia que era o único som que se ouvia na cidade.
«Está a apanhar um pouco de sol D. Teresa?» Disse Emília à laia de cumprimento.
«É verdade. Está quentinho, mas não está muito calor e isso, na minha idade, é bom.»
«Tenho pensado muito na nossa última conversa e cheguei a uma conclusão: O problema está no meu corpo.»
«Explique lá isso?»
«Tenho um corpo imperfeito e por isso tenho vergonha de o mostrar.»
«Isso é contraditório com o que diz o seu marido. Penso que já tínhamos estabelecido que ele não estava a mentir, quando emitia a sua opinião.»
«Mas se o porquê está em mim e tenho de ser eu a descobri-lo, por que temos de estar sempre a recorrer à opinião do Pedro?»
«Quando o porquê que identificamos é um objeto ou algo físico, então devemos calibrar o entendimento que fazemos desse objeto e, para isso, devemos recorrer à opinião de terceiros. Neste caso, o único terceiro que tem uma opinião fundamentada sobre o teu corpo é o Pedro. Ou existe outra pessoa que o possa fazer?»
«Credo! Não, não existe.»
«Então?»
«Pensava que este processo não envolvia opinião de terceiros, que era uma busca exclusivamente minha.»
«A busca é exclusivamente da Emília, no entanto, é fundamental calibrar as conclusões e para isso é necessária a intervenção, ainda que indireta, de terceiros.»
«Então assumindo que o meu corpo não é imperfeito o porquê não tem nada a ver com ele.»
«O porquê até pode estar relacionado com o corpo da Emília, mas isso não quer dizer que o corpo seja imperfeito.»
«Agora fiquei baralhada. Só falta dizermos que está tudo na minha cabeça.»
«Está?»
«Eu não sou maluca!»
«Nem eu me atreveria a concluir tal coisa, pois efetivamente está muito longe de ser verdade. Mas recomendo que se pergunte se não está tudo na sua cabeça. Mas, mais importante do que fazer a pergunta é encontrar a resposta.»
Emília olhou a anciã em silêncio num misto de raiva e desconcerto. D. Teresa estava, em simultâneo, a insinuar que ela era maluca e que não estava maluca. Aquilo não fazia qualquer sentido. Antes de perder a paciência com a velha, deu por terminada a conversa. Entrou em casa irritada e mal disposta. Pedro percebeu isso quando ela o foi chamar para jantar. Emília tinha pegado nos restos dos dois dias anteriores e tinha feito uma conjugação perfeita. Foi uma refeição deliciosa, mas ela não abriu a boca. As despesas da conversa ficaram a cargo dos filhos e do marido. Durante o resto da semana ela pensou muitas vezes naquilo que D. Teresa tinha insinuado, até concluir que ela, na verdade, não tinha insinuado nada: estava tudo na sua cabeça. Essa conclusão trouxe alguma luz sobre o outro assunto. Tinha de falar com a D. Teresa, na primeira oportunidade.
No sábado seguinte, depois do almoço, Emília foi para a varanda na expetativa de encontrar a anciã, mas encontrou-a vazia. Sentou-se e refletiu sobre as últimas conversas. Fechou os olhos e deixou o pensamento viajar pela sua vida. Reviu as reações, as mudanças de humor, as irritações e concluiu que muitas delas estavam associadas ao seu corpo. «De que forma pode estar tudo na minha cabeça?» Interrogou-se. Antes que pudesse responder D. Teresa manifestou a sua presença de forma jovial.
«Ora boa tarde!»
«Já estava a ficar preocupada com a sua ausência.»
«Fui dormir a minha sexta.» Disse a anciã, com um piscar de olho.
«Eu já percebi como pode estar tudo na minha cabeça.» Disse Emília não se contendo.
«Então!»
«O meu corpo não é perfeito nem imperfeito. O problema está não no corpo em si, mas na forma como eu o vejo, por isso é que está tudo na minha cabeça.» Disse Emília, com ar vitorioso.
A anciã sorriu. Foi um sorriso de satisfação, de orgulho. A sua pupila tinha alcançado a sua primeira vitória. Tinha chegado à casa do porquê. Era tempo para festejar.
«Parece-me que a Emília conseguiu identificar o seu primeiro porquê. A partir daqui inicia-se uma nova jornada.»
«Então a descoberta não vai permitir-me resolver todas as inquietações de que lhe falei?»
«Vai sim senhor. No entanto, a descoberta do porquê não é um fim em sim, é um passo importante, mas apenas mais um passo na longa caminhada. Agora é preciso abandonar a casa do porquê e fazer o caminho.»
Depois desta reflexão ficaram em silêncio. Emília não fazia ideia do caminho que tinha de seguir, mas estava segura de que a D. Teresa a orientaria no percurso. Agora era tempo de interiorizar a conclusão a que tinha chegado. Deixou-se, portanto, estar mais algum tempo na casa do porquê.

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