A
JORNADA
Era a
última semana da quaresma. Seria uma semana de trabalho mais curta, mas isso
parecia pouco reconfortante, perante a perspetiva de ficar fechada em casa.
Levantou-se irritada: vá-se lá saber porquê. O marido acabava de sair do banho.
O corpo bem tonificado e sem grandes vestígios de gordura, prendeu o seu olhar.
Ele virou-se e exibiu o peito torneado e o abdómen liso. O sorriso dele
incomodou-a. Porquê? A presença daquele corpo enxuto e tonificado era como um
insulto.
«Bom dia
meu amor! Dormiste bem?»
«Não!»
respondeu ela, de forma seca e dura.
Os gestos
bruscos com que puxou a toalha e a jogou sobre a bancada, estavam em sintonia
com as palavras. Matou o diálogo. Quando chegou à cozinha ele já lhe tinha
preparado o sumo e as torradas. Arremessou, sobre a mesa, o pires e poisou a
chávena de café fumegante, sobre o mesmo, com gestos violentos. Ele mastigava a
torrada de forma impassível. «Isto é incrível!. Nada incomoda este gajo. Será
que ele nunca vai explodir?» Pensou Emília irritada, sem saber bem porquê ou
com o quê. O café teve o condão de a acalmar. Estava quente e delicioso. À
medida que o bebia era como se um anjo a aconchegasse com uma manta macia e
sedosa que a protegia e reconfortava. Uma sensação gostosa de ser amada
envolveu-a, aquecendo-a. Perguntou-se por que razão o café lhe dava aquela
sensação, mas ficou por aí. Deixou a pergunta sem resposta.
Estar de
quarentena significava que não tinha empregada, por isso, repartiam entre eles
as tarefas de fazer o almoço e o jantar, arrumar a cozinha e limpar a casa,
embora a última só acontecesse ao fim de semana. Ele estava longe de ser um
homem perfeito, mas era fácil de conviver com ele. Tinham momentos em que tudo
era perfeito, mas depois bastava um gesto, uma palavra, algo por vezes
insignificante, e o caldo estava entornado. A irritação crescia dentro dela,
como um vómito que jorrava em forma de uma torrente de atos e palavras, talvez
fosse mais adequado dizer palavrões, que deixavam o resto da família calada,
num desconforto indescritível. Por vezes os filhos reagiam e ela acalmava. O
marido raramente dizia alguma coisa, nesses momentos, embora mais tarde tivesse
abordado o comportamento dela, em algumas das ocasiões. Ela, ao mesmo tempo que
ficava feliz por isso, achava que ele devia reagir e gritar com ela. A
irritação desaparecia tão misteriosamente como havia aparecido e a calma
imperava novamente.
Na
quinta-feira ficaram a ver televisão até mais tarde, pois no dia seguinte não
trabalhavam. Ficaram aninhados no sofá como dois namorados. As carícias mútuas
deixaram-nos excitados e, em determinada altura, sem necessidade de palavras,
levantaram-se e foram para o quarto. Fizeram amor com intensidade e paixão. Ele
sabia como lhe dar prazer e ela como o satisfazer. Experimentaram várias
posições e exploraram o corpo do parceiro com fervor. Houve momentos de muito
carinho e outros mais selvagens, em que ele a segurou pelos cabelos e lhe deu
umas palmadas. Ela retribuíu com um tratamento igualmente duro e no fim explodiram
num clímax simultâneo e arrebatador. Abraçaram-se, gozando ainda aquele momento
de prazer supremo e ficaram assim durante algum tempo. Antes de adormecerem
foram lavar-se. O espelho refletiu a imagem de ambos nus e ele sorriu para o
espelho.
«Não sei
qual é a piada!» Disse ela de forma ríspida.
Pedro ficou
a olhar para ela sem saber o que dizer. Estava feliz e ver o reflexo dos dois
no espelho era uma imagem que lhe agradava. Emília ficou irritada e ansiosa.
Isso fez com que não adormecesse de imediato. Pedro ressonava a seu lado e ela
pontapeou-o para que ele se virasse. Ao fim de algumas tentativas ele virou-se
para o outro lado. No silêncio da noite a sua irritação tornou-se
ensurdecedora. Finalmente adormeceu. No dia seguinte acordou tarde e de mau
humor. Pedro preparou-lhe um sumo e uma torrada e fez-lhe companhia.
«O almoço
já está o forno, mas como já são onze horas só o vou ligar lá para a uma.»
Ela
limitou-se a acenar com a cabeça. Terminado o pequeno-almoço ele foi para o
escritório e ela para a varanda. Tinha que fumar um cigarro.
«Bom dia
Emília!»
Sorriu. A
saudação quente e o ar bondoso da anciã encheu-lhe o coração.
«Bom dia D.
Teresa.»
Falaram de
coisas banais, enquanto o cigarro se consumia entre os dedos de Emília,
instigado por umas quantas sucções. O prazer era evidente e a anciã absteve-se
de qualquer comentário, apesar de ser radicalmente contra o tabaco.
«A Emília
está com um ar cansado.»
«Não dormi
bem…»
Emília
contou o que se tinha passado, deixando de fora os detalhes da noite fantástica
de sexo que tinha tido.
«A maior
parte das vezes irrita-me estar tão irritada!» Disse Emília.
«Está a
pensar fazer algo para mudar o estado das coisas?»
«Tenho
tentado encontrar o porquê, mas não consigo encontrar um porquê que esteja na
base de tudo.»
«Não
consegue encontrar porque isso é quase impossível. Não existe um porquê único.
Embora cada caso seja distinto, por regra, existem sempre vários porquês, ou
seja, várias razões para aquilo que fazemos e para a forma como procedemos.»
«Então
nunca vamos perceber a associação entre um determinado comportamento e o seu
porquê.»
«Eu sei que
não é simples encontrar o porquê, mas isso não quer dizer que não o consigamos.
Por vezes a causa e o efeito estão diretamente ligados, outras vezes uma causa
multiplica os seus efeitos diretos e indiretos e influência uma série de
comportamentos.»
«Não
consigo entender.»
A anciã
sorriu. O coração de Emília estava fechado e o espírito alheado e distante.
Ainda seria preciso algum trabalho para ela conseguir encontrar o caminho, mas,
definitivamente, já tinha iniciado a jornada, embora não estivesse
verdadeiramente consciente disso.
«Eu tive
uma aluna, na faculdade, que acabou por se tornar minha colega e amiga. Privei
com ela desde que concluiu o doutoramento, aos vinte e oito anos, até falecer.
Existiam duas coisas que ela não fazia, em circunstância alguma, porque
detestava: Amor na posição de abdómen para baixo e apanhar sol.»
«Isso era
um pouco estranho.» Comentou Emília.
«Cada
pessoa tem a sua forma de ser e nós devemos aceitar os amigos com as suas
virtudes e os seus defeitos.»
Emília
assentiu.
«Um ano
depois de ficar viúva, o que aconteceu aos 45 anos de idade, a minha amiga
reencontrou o namorado dos tempos da faculdade, também viúvo. Um dia estávamos
a tomar café, ao fim da tarde e ele convidou-nos para ir à praia no dia
seguinte. A minha amiga ficou calada e eu, percebendo o seu constrangimento,
respondi dizendo que ela não gostava de praia. Ele olhou para mim como se eu
tivesse dito a maior barbaridade. Tínhamos falado sem preconceitos de tudo, até
de algumas intimidades e ele explodiu. “Dizer que ela não gosta de praia é
mesmo de dizer que não gosta de sexo à canzana”. E eu confirmei que
ela não gostava.»
«O que
aconteceu a seguir?»
«A minha
amiga arranjou forma de nos virmos embora rapidamente. Eu alinhei, mas não a
larguei. Acontece que ela adorava praia e o resto também, mas como lhe apareceu
uma doença chamada “pano branco”, que lhe manchou as costas, ela não conseguia
suportar que alguém lhe visse as costas, nem em privado, nem em público. Só de
imaginar o marido a ver a mancha branca nas costas, perdia a vontade de fazer
sexo.»
«Essa
mulher tinha problemas mentais.»
«Isso é uma
coisa que todos nós temos, a grande diferença reside na forma como lidamos com
eles. Essa minha amiga tinha um conjunto de reações e comportamentos, para os
quais inventou uma desculpa. No entanto, todos eles resultavam do facto de ter
aquela doença e da forma como lidava com ela.»
«Nesse caso
existia uma ligação muito direta, entre a causa e o efeito.» Disse Emília.
«Não era
tão direta assim. Pelo meio ainda existia um falso porquê. Para além disso,
existiam outros comportamentos que eram provocados por essa doença: Ela reagia
mal a comentários sobre manchas na pele, quer em relação e ela quer em relação
a outras pessoas. Isso criou-lhe alguns problemas de relacionamento. Ainda como
resultado da doença, ela criticava as mulheres que usavam roupas que mostravam
as costas ou outras partes do corpo, sendo muito púdica. O verdadeiro “ela” era
o oposto de tudo isso.»
«Como é que
a D. Tereza ficou a saber isso tudo?»
«Acabamos
por frequentar juntas vários seminários para aprendermos a conhecer-nos melhor
a nós próprios e sobre o processo de aceitação e mudança. Isso mudou
completamente a vida dela e a minha também.»
«Interessante
como um facto tão pequeno e quase irrelevante provocava tantos problemas e tão
diversos, afetando a vida dela de forma quase universal.» Comentou Emília.
Eram horas
de fazer o almoço e as mulheres separaram-se. A história da amiga da D. Teresa
não lhe saía da cabeça e deu consigo a pensar no seu caso concreto. «Qual será
o motivo das minhas irritações e das mudanças bruscas de humor?» Pensou. Depois
do almoço os filhos retiraram a mesa e arrumaram a cozinha. Eles ficaram os
dois sentados a conversar. Isso acontecia muitas vezes, mas não raramente
acabava de forma brusca, devido à reação dela, a um comentário qualquer que
Pedro fazia. Nesse dia ela conseguiu controlar-se e, para sua surpresa, isso
fê-la sentir-se muito bem. O mais admirável é que não era a reação de Pedro,
que a fazia sentir assim. Ela sentia-se bem com ela própria. Subitamente o
Pedro, os filhos e até a casa lhe pareciam diferentes. Era como se estivesse a
vê-los numa perspetiva que nunca tinha visto.
«Pai não
vais andar hoje, nem fazer exercício?» Perguntou o filho mais novo.
«Queres
vir? Fazia-te bem andar.»
A mudança de humor foi automática e brusca.
«Vão vocês!
Meus Deus, nunca vi ninguém tão viciado no exercício. Eu vou comer e beber. Se
morrer, morro feliz!» Disse ela numa explosão de fúria.
Pai e filho
ficaram a olhar para ela. Não havia razão para tudo aquilo. Pedro ainda abriu a
boca para fazer um comentário, mas limitou-se a encolher os ombros e a abanar a
cabeça, ao mesmo tempo que se afastava. Emília quando se viu sozinha ficou
irritada consigo própria. Devia ter ido com eles ou pelo menos não devia ter
reagido daquela forma. Tinha de fumar um cigarro para se aclamar. D. Teresa estava
na varanda a apanhar sol e recebeu-a com um sorriso. Era um sorriso que tinha o
condão de acalmar Emília, mas naquele dia não teve esse efeito. Apenas depois
de terminar o cigarro ela se sentou perto de D. Teresa. Estava pronta para
falar, mas sobretudo para ouvir. Desde pequena que isso acontecia, depois de
passar a irritação que vinha a seguir a ter feito um disparate.
«Então os
seus homens foram fazer uma caminhada?»
Emília
narrou os acontecimentos recentes e descreveu o seu estado de espírito.
«A Emília
iniciou uma jornada que inexoravelmente a irá conduzir o perceber o porquê ou
os porquês que existem na sua vida. Quando isso acontecer verá que a vida fica
mais leve.»
«Como é
isso?» Perguntou Emília.
«A maior
parte das pessoas carrega a vida como um fardo, pelo menos a maior parte do
tempo. No entanto, a vida não tem de ser um fardo. Na verdade, não é um fardo,
independentemente das dificuldades e das vicissitudes com que nos brinda. Ou
seja, nós complicamos essas dificuldades e, consequentemente tornamo-las mais
pesadas. Se as descomplicarmos, tudo fica mais simples.»
«Isso dito
dessa forma parece muito simples, mas na realidade não é. Existe alguma fórmula
para descomplicar? Ou seja, existe uma metodologia?»
«Nem é
simples, nem existem fórmulas. A metodologia é aquela de que já falamos:
encontrar o porquê. Procurar dentro de nós uma resposta. Essa é a jornada. O
caminho é incerto e diferente para cada um de nós.»
Ficaram as
duas caladas, cada uma absorvida com os seus pensamentos. Quando a D. Teresa
falava tudo parecia fazer sentido, mas quando tentava aplicar isso à sua vida
nada fazia sentido. Talvez ela tivesse de deixar de tentar encontrar uma matriz
que se aplicasse a si e devesse seguir os princípios descritos pela anciã e
construir a sua própria matriz. Depois de um silêncio prolongado, acabou por
ser a anciã a retomar a conversa.
«Aquela
minha amiga de que te falei tinha outros problemas na sua vida que também
influenciavam o seu comportamento. Ela vivia num estado de alguma ansiedade,
que fazia com que se assustasse com facilidade e tivesse dificuldade em dormir
de forma a conseguir o descanso desejado.»
«Qual era o
porquê desse comportamento?» Perguntou Emília.
«Ela fez
algum tratamento de terapia e aconselhamento, tendo os especialistas concluído
que esse comportamento se devia o stress. No entanto, ela não conseguiu
ultrapassar o problema, nem com tratamento, nem com medicação. Acontece que
após o falecimento do marido ela passou a dormir bem e a andar tranquila.
Quando foi questionada sobre o assunto ela confessou que morria de medo que o
marido descobrisse que o tinha traído. Depois do marido falecer deixou de ter
razão para ter medo. Mais uma vez o porquê não era nada evidente, mas,
sobretudo, apenas podia ser identificado pela própria.»
Emília não
disse nada. Tinha ficado claro que tinha que ser ela a encontrar o porquê
associado a cada uma das suas reações. Só depois disso teria condições de
encontrar a paz e a harmonia que tanto desejava. A vontade de fazer essa
jornada tinha crescido dentro dela de forma avassaladora, ao ponto de ser mais
importante que o sentimento de revolta que tantas vezes tomava conta dela. D.
Teresa acenou afirmativamente com a cabeça a ouvir, na primeira voz, esta
constatação de Emília. «A Emília está no bom caminho. Agora ela tomou
verdadeira consciência de que iniciou a jornada.» Pensou. Pedro e os filhos
regressaram do passeio ao fim da tarde e Emília recebeu-os com um sorriso.
«Vamos
encomendar piza para o jantar. Poder ser? Perguntou Pedro.
«Claro.»
Disse Emília.
Foi um jantar
divertido com o filho mais novo a contar as peripécias do treino e a brincar
com a idade do Pai.
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