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A JANELA DA CORTINA VERMELHA


A JANELA DA CORTINA VERMELHA


O julgamento com falta de conhecimento é o pior dos julgamentos


Ela era apenas uma sombra cosida com a cortina translúcida. Era a única cortina vermelha. Ele vigiava a janela constantemente, mas sem qualquer resultado. Todos os dias, de manhã e à noite, Rui abria a janela do seu quarto na expetativa de ver aparecer a face que ele ansiava por conhecer.

Tudo tinha começado há dois meses atrás. Rui era um jovem pacato, que frequentava o curso de engenharia e que dedicava mais atenção ao estudo, aos jogos de computador e aos filmes, do que às raparigas. No início, isso tinha feito alguma confusão aos pais, mas rapidamente se habituaram à ideia. O amor parecia despontar mais tarde do que na geração anterior. Fruto dos tempos! Era, no entanto, um jovem muito interessante: tinha um metro e oitenta de altura, cabelos castanhos e uns olhos que mudavam de cor consoante o humor e que eram a perdição das mulheres. Naquela manhã de sábado ele estava sentado à secretária vendo um vídeo musical e a jogar na play station. Só lhe faltava vencer um adversário. Era um australiano muito bom. Tratava-se de uma competição internacional. Olhou para a rua e ficou preso na silhueta da mulher que entrava na porta do edifício, do outro lado da praça. Morreu. Regra geral ficava muito irritado quando perdia, mas, dessa vez, isso foi completamente irrelevante. Rui tinha ficado preso à silhueta daquela mulher. Tinha um corpo elegante, de formas perfeitas. O mais singular de tudo era que escondia o rosto com um véu. «Será islâmica?» Interrogou-se. Não era um véu islâmico. Na verdade era um véu como o que era usado pela damas, antigamente, para se protegerem do sol ou para esconderem a face dos olhares curiosos.

Sem saber explicar a razão Rui não consegui-a afastar do seu pensamento a imagem que a sua imaginação criou daquela mulher. O tempo que passava à janela, a tentar descortinar quem era a vizinha, já tinha sido notado. Enquanto ele olhava abertamente para o outro lado da pequena praça, ela escondia-se atrás da cortina e admirava-o, de forma dissimulada, mas tão abertamente quanto ele. Parecia óbvio que ela queria vê-lo, apenas não queria ser vista. Aquele comportamento deu origem às mais variadas especulações: Desde a timidez até à reclusão, forçada por uns pais austeros e tiranos; Desde a pertença a uma seita religiosa até a ser portador de uma doença grave e contagiosa. Enfim, especular sobre o desconhecido tornava possível a verosimilhança de qualquer teoria.

O treino tinha acabado tarde nesse dia e já era quase meia noite. Ao chegar à esquina o cão saltou-lhe para as pernas. Assustou-se. O cão apenas queria brincadeira. Baixou-se para lhe fazer umas festas. Na outra extremidade da trela estava ela. Parou. Quis dizer algo mas ficou apenas de boca aberta. Assustada ela baixou o véu. Tinha mostrado a face e por isso encolheu-se, cosendo-se com a esquina. Ele foi o primeiro a reagir.

«Boa noite. O meu nome é Rui.»

Silêncio. Ele aguardou mantendo o olhar fixo nela.

«Eu sou a Rita.»

«Como se chama o cão.»

«É uma cadela. Chama-se Patty.»

«Eu gostava de te conhecer melhor.» Disse ele.

«Eu não posso sair à rua, pelo menos durante o dia.» Disse ele.

«Não precisas esconder o teu rosto de mim. Ele é lindo.» Disse Rui.

Ela sorriu. O sorriso era simultaneamente triste e trocista.

«Eu não escondo o rosto de ninguém. Mas duvido que as pessoas achem o meu rosto bonito.»

«Então porque usas esse véu?» Perguntou ele.

«Para proteger o rosto. Sofri queimaduras graves e não devo apanhar sol para evitar que fiquem marcas na face. Acabei por me habituar ao véu e trago-o sempre que saio de casa.»

Como para a maior parte das coisas na vida a explicação era simples.

Rui passou a frequentar a casa de Rita com regularidade. Estavam apaixonados e a paixão requer presença física a todo o tempo. Agora, quando olhava para o outro lado da praça, a figura que se desenhava por detrás da cortina vermelha, tinha um nome e um rosto. O rosto da sua amada.

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