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A FEIRA


A FEIRA

Armando era o terceiro filho e tinha dois irmãos mais novos. Os dois mais velhos, concluído o antigo sétimo ano, saíram de casa e foram trabalhar para Lisboa e Porto, respetivamente. Estavam cansados de ter de andar de enxada na mão. A pequena reforma do pai tinha de ser complementada com os proventos da terra e isso implicava a colaboração de todos. Decorria a década de setenta e o país vivia tempos conturbados. O verão quente de setenta e cinco não ia muito longe e a instabilidade governativa era o apanágio do dia-a-dia. O ditado diz ”para cá do Marão mandam os que cá estão”, mas a realidade era bem diferente. O pai de Armando era uma pessoa atenta e preocupada com a política, mas em primeiro lugar estava o sustento da família. Isso mantinha-o afastado das candidaturas, mas não das discussões politicas, em que se envolvia sempre que ia à aldeia, dado que viviam numa pequena propriedade, a meio caminho, entre a aldeia e a cidade.
A família alimentava-se basicamente com recurso aos produtos obtidos da terra. O milho permitia fazer o pão, cozido no forno de lenha e alimentar os porcos e as galinhas, que por sua vez davam carne e ovos. As vacas davam leite e algum dinheiro quando eram vendidas. O feijão e as batatas também provinham da quinta, bem como os produtos hortícolas e a fruta, na época deles. Os excessos, sobretudo do vinho, eram vendidos, no mercado, por preços que proporcionavam algum ganho, porque a mão-de-obra era caseira. Apesar de todas as restrições, os filhos frequentavam a escola, pelo menos até ao nível anterior ao universitário.
«Maria, amanhã o Armando só tem aulas de tarde, não é verdade?»
«Sim.» Respondeu a mulher.
«Quando ele chegar das aulas, se eu me esquecer, avisa-o que tem de se deitar cedo. Amanhã vamos à feira. Está na altura de vender a toira.» Disse o pai de Armando.
«Vais fazer o rapaz levantar-se, a que horas? Olha que ele pode ter de estudar!»
«O rapaz é esperto, não precisa de estudar. Amanhã tem de se levantar às seis e meia. Temos que sair daqui às sete, pois quero chegar à feira pouco depois das oito e como vamos a pé demoramos mais de uma hora, por isso…»
«Ó Home de Deus, não podes falar com um dos feirantes para te levar a toira?»
«A toira não deve valer mais de trinta notas e só no transporte ia gastar por volta de duas. Era o que faltava. Vamos a pé!»
O tom do marido pôs fim à conversa, embora ela não estivesse de acordo. Armando chegou às dezanove e trinta e sentaram-se todos à mesa. A ida à feira até o deixou entusiasmado, embora a perspetiva de se levantar cedo não fosse animadora. Às seis e meia da manhã, em Maio, ainda era de noite.
«Toma lá a corda e vai prender a toira.» Disse o pai.
«Prendo-a pelos cornos, certo?»
«Sim. Sabes porque?»
«Não.»
«Se a prendesses pelo pescoço, primeiro não podias usar um nó de correr, porque a estrangulavas, segundo porque quando ela desse uma arrancada levava-te à rojo, devido à força que tem no pescoço.»
«Nos cornos tem menos força?» Perguntou o Armando.
«Sim tem um pouco menos de força, mas a grande diferença é que o nó de correr aperta-lhe os cornos, sempre que fizer força e isso doí-lhe, por isso ela faz menos força.»
Estava fresco, apesar do lindo dia de sol, que começava a despontar. A natureza dormia e até os passarinhos respeitavam o silencio da amanhã. Armando seguia à frente, conduzindo o animal, com rédea curta, para evitar que saísse da berma. No inicio, sempre que passava um carro por eles, ele tinha se colocar ao lado da toira para a acalmar, mas com o decorrer do tempo o animal acostumou-se e, apesar de estranhar o facto, deixou de necessitar de uma assistência especial. O percurso demorou uma hora e trinta minutos, sempre caminhando pela berma da estrada. A distância até Vila Real era de dois quilómetros, mas a feira ficava do outro lado da cidade.
A feira assemelhava-se a um vasto arquipélago. O mar de animais era intercalado por ilhas de homens, que se agrupavam aqui e ali. Havia cavalos, burros, vacas: Serranas e Torinas, porcos, ovelhas e cabras. Era a sua primeira feira e isso apanhou Armando de chofre. A entrada na feira era feita por uma zona mais elevada, permitindo abranger, num golpe de vista, o espaço onde homens e animais se misturavam. Armando estancou por uns segundos. O pai olhou-o de soslaio, com um sorriso nos lábios e deixou-o absorver o impacto. A visão era espetacular, mas o grande choque era a mistura de sons. O recinto da feira assemelhava-se um grande instrumento, do qual, um experiente tocador tirava notas dissonantes, mas com uma certa musicalidade. Ao fundo um burro zurrava, e as cabras baliam em resposta. Logo um cavalo relinchava, como quem manda calar todo o mundo. Em resposta as vacas muavam, à vez, como que desafiando a ordem do cavalo. As conversas, negociações e discussões dos homens, criavam um ruído de fundo, que funcionava como suporte para as notas, afinadas, soltadas pelos vários animais. O olhar saltava-lhe de som em som, percorrendo o recinto da feira com uma expressão extasiada.
«Vamos?» Disse o pai de mansinho, como se acordasse o filho de um sonho.
O pai tomou a dianteira. Apenas iriam parar na zona onde estavam agrupados os criadores de gado particulares e não os feirantes que compravam os animais, porta a porta, para vender nas feiras. Esses tinham os animais em grupo ou dentro dos camiões de transporte. Quando encontrou um espaço mais vazio o pai parou e Armando ficou ao seu lado. O animal despertou de imediato a curiosidade de alguns compradores. O pai não lhes deu grande atenção. Eram compradores hostis. Tratava-se de grupos de duas ou três pessoas amigas, em que um fazia o papel de comprador interessado e os outros desvalorizavam o animal, como forma de conseguir um preço mais baixo. O pai pedia trinta e duas notas, mas o valor máximo oferecido era de vinte e quatro. O processo repetiu-se várias vezes tendo o valor da toira, um animal novo e promissor, chegado às vinte e seis notas.
O processo de venda ou de compra era sempre muito participado. E por vezes desequilibrado. Existiam vários conjuntos de pessoas que se moviam entre compradores e vendedores oferecendo a sua opinião de “especialista”. Eram eles que influenciavam a opinião do comprador e do vendedor, quando estes não conseguiam resistir e se deixavam sucumbir pela pressão. O pai de Armando era um homem de convicções fortes, por isso não sucumbiu, mas também não conseguiu criar o ambiente necessário para fazer a venda pelo preço que queria.
«Não vamos conseguir vender a toira, pois não pai?»
O pai olhou para ele com uma expressão pensativa.
«Fica aqui que eu vou dar uma volta. Se alguém perguntar o preço do animal, já sabes: são trinta e duas notas!» Disse o pai afastando-se.
Armando ficou sozinho. Não tardou muito, surgiu o primeiro comprador. Um jovem de quinze anos, sozinho, era presa fácil: aguçou-lhe o apetite. Queriam saber quem ele era, mas como o pai não era muito conhecido no meio, ficava difícil referenciá-lo. À falta de melhor, foi referenciado pela aldeia onde residia. A indicação do preço gerou indignação mas o comprador não se afastou. A forma como Armando defendeu o valor do animal, invocando as características da sua ascendência e o potencial de tão jovem exemplar, provocou a admiração dos circundantes e o grupo de espetadores foi aumentando. Entretanto, o pai aproximou-se acompanhado de mais dois homens que se espalharam entre a assistência, tendo o pai ficado um pouco afastado. Eram ambos feirantes conhecidos. Até aí os espetadores pareciam estar do lado do comprador, mas em segundos tudo mudou. O pai colocou um dedo nos lábios e ele entendeu a mensagem. Os feirantes eram conhecidos especialistas e começaram a fazer comentários apreciativos. Entretanto, um deles lançou uma oferta de vinte e oito notas, que foi perentoriamente rejeitada por Armando. O comprador sentiu que o negócio lhe fugia.
«O animal é fantástico. Eu não estou comprador, mas para mim vale mais de trinta notas.» Disse o outro especialista, olhando para os dois licitadores, ao mesmo tempo que levantava o rabo do animal e apreciava as suas qualidades de futura parideira.
Os espetadores, confrontados com o “especialista”, mudaram de opinião. Foram vários os comentários a elogiar o animal. Mesmo sendo detentor da licitação mais elevada, o feirante aumentou a oferta para vinte e nove notas e o comprador reagiu, de forma automática, com uma contraproposta de trinta. Nessa altura o pai afastou-se e o filho entendeu a mensagem: tinha sido encontrado o preço. Apesar disso, Armando fixou-se nas trinta e duas notas. O “especialista” admirou a sua tenacidade e decidiu ajudá-lo. Comprador e vendedor entraram numa discussão de pormenor, que acabou numa solução salomónica.
«Para fecharmos negócio rachamos isto ao meio.» Disse Armando.
«É justo!» Sentenciou o especialista.
A toira foi vendida por trinta e uma notas, ou seja, por três mil e cem escudos. Entretanto, o pai chegou num passo apressado.
«Pai, este senhor comprou a toira, mas não tem, com ele, dinheiro para pagar.» Disse o filho.
O pai conhecia bem o comprador e sabia que era um homem de palavra. Apertaram as mãos e acordaram que o comprador lhe levaria o dinheiro, na semana seguinte, mas a toira seguia já com ele. Aquilo fez alguma confusão ao Armando. Na sua mente a dúvida repetia-se ininterruptamente. «Será que o comparador vai lá levar o dinheiro?» O pai estava bastante satisfeito com o negócio e parecia tranquilo quanto ao pagamento, mas ele não se conteve.
«Pai. O homem leva a toira e nós ficamos sem toira e sem dinheiro. Então e se ele não pagar?»
«Filho. Trata-se de um home de palavra e a palavra, selada com um aperto de mão, tem mais valor que qualquer contrato. Não te preocupes que ele vai lá levar o dinheiro.»
No regresso a casa, passaram por uma tasca e foram comer uns pastéis de bacalhau e beber um sumo. O pai era muito poupado e não era costume isso acontecer, mas Armando tinha conseguido um valor excecional pelo animal e merecia uma recompensa. Regressaram a pé e ao meio dia, estavam em casa.
Na semana seguinte, o comprador veio entregar o dinheiro, tal como o pai tinha previsto. Estando no meio do campo e aproveitando a presença da irmã mais nova, que tinha vindo trazer-lhes água, o pai pediu-lhe para levar o dinheiro para casa. Quando a filha voltou com água o pai confirmou que ela tinha guardado o dinheiro.
«Deixei os três mil e seiscentos escudos na sua mezinha de cabeceira.» Disse a filha.
«Não são três mil e seiscentos, são três mil e cem.» Replicou o pai.
«O pai acha que eu não sei contar dinheiro?» Disse a filha, de treze anos.
«Então não eram trinta e uma notas de cem?» Perguntou o pai.
«O pai não contou com a nota de quinhentos, que estava dobrada entre as de cem.» Disse a filha.
O pai percebeu tudo. O comprador tinha-se enganado e tinha-lhe dado dinheiro a mais. Quando confirmou essa situação, enviou palavra de que queria falar com o comprador. Na feira seguinte, o comprador passou lá por casa.
«Então o que se passa?» Perguntou à laia de saudação.
«O senhor enganou-se no dinheiro que me deu.»
«Eu não me enganei. Dei-lhe as trinta e uma notas ajustadas!» Replicou o homem.
«O senhor deu-me dinheiro a mais e não a menos.»
O comprador abriu a boca mas não disse nada. Depois de uns segundos de hesitação falou.
«Bem me tinham dito que o senhor era um homem honrado. O mais honrado que eu podia encontrar. Pois olhe que eu já tinha dado pela falta de quinhentos escudos, mas nunca me passou pela cabeça que lhos tivesse dado a si. O senhor bem podia ter ficado com eles que eu nunca iria saber.»
«Bem sei. Mas como diz a bíblia: A César o que é de César... Aqui tem os quinhentos escudos.»
O comprador despediu-se, com muitos agradecimentos e com um aperto de mão forte e de reconhecimento. Era cada vez mais raro encontrar o tipo de honestidade que tinha presenciado.

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