O POÇO
Decorria o ano de 1966 e Salazar,
apesar dos rumores sobre a sua debilidade física e dos seus setenta e sete anos
de idade, governava o país com mão de ferro. O controlo apertado sobre a
divulgação de notícias, não impedia a capital de se agitar com acontecimentos
mais ou menos recentes, como o silenciamento da voz da oposição, com a morte de
Humberto Delgado, ocorrida em Espanha, a visita do papa Paulo VI, ou a
inauguração da ponte sobre o tejo, com o nome de Ponte Salazar. Se à capital
sobejavam razões para se agitar, nada abalava a pacatez dos habitantes dos
sopés do Marão e Alvão. O desconhecimento não lhes trazia a felicidade, mas contribuía
para a sensação de segurança, transmitida pela noção, errada, da imutabilidade
das coisas, indiferentes às mudanças vividas no resto da Europa.
Maria de Jesus era uma mulher de nervos
de aço. Enfrentava a sua cruz sem um queixume e sem baixar a guarda. O marido
fazia um ano que estava emigrado na Suíça. Tinha-a deixado a cargo com o
sustento e a educação dos sete filhos e com a gestão da pequena quinta. Apesar
de ser uma força da natureza, era demais para ela. Só ela sabia a luta que
travava consigo própria, para não demonstrar as dúvidas e preocupações que a apoquentavam.
A moradia de perpianho encimava, de
forma sobranceira, os terrenos de sequeiro, que se desenvolviam em socalcos,
até chegar à zona de regadio, plana e fértil, que confinava com o riacho, que
servia de extrema à quinta. Era uma pequena propriedade, mas, vivendo numa numa
zona de minifúndio, Maria de Jesus era considerada uma proprietária abastada.
Apesar disso, a ambição de colocar os sete filhos a estudar tinha levado o
marido a procurar trabalho em terras longínquas. Era uma casa grande mas
inóspita. Não lhe faltava o calor e a alegria das pessoas que a habitavam, mas
faltava-lhe o conforto de um lar, tantas vezes desvalorizado pelas gentes do
norte, habituadas a suportar as intempéries, como algo que fazia parte das suas
vidas. A cozinha era um espaço amplo, com cinquenta metros quadrados e com
utilidade múltipla. A parte que assentava diretamente no chão, tinha cerca de
vinte metros e uma base de cimento. Aí funcionava a cozinha, com uma bancada de
pedra, em forma de pia, de dois metros, a lareira, que no inverno se enchia de
chouriças e salpicões, pingando gordura, e o forno a lenha, para cozer a broa.
A parte restante era uma sobreloja, com chão de madeira, de tábuas aparelhadas,
mas sem macho e fêmea, produzindo, entre si, frestas de um centímetro. Por
baixo eram criados os porcos que partilhavam o calor e o odor com os donos.
Funcionava como sala de jantar e de armazém para as tulhas de milho e feijão. A
zona dos quartos possuía chão de madeira com macho e fêmea, o que a tornava
mais confortável, mas a casa, no seu todo, padecia de um problema: As janelas e
as portas. A forma como a madeira se relacionava com o perpianho era pouco
amigável e o isolamento acústico e térmico eram inexistentes.
O começo de mês de Novembro foi mau. A vareja dos Santos tinha sido agreste e
o verão de São Martinho inexistente. Chegados ao final do mês já o Inverno
havia assentado arraiais. O vento, soprado pelo Marão, coberto de neve,
tinha-se tornado gélido. Para não sucumbir ao frio os filhos quase sucumbiam a
peso dos cobertores e mantas que ela punha na cama. O que valia era que dormiam
aos pares.
O último dia do mês foi assolado por
uma tempestade violenta. Logo a seguir ao almoço o céu escureceu de tal forma
que o dia se converteu em noite. A chuva caía em bátegas, com gotas grossas,
que batiam nas telhas como pedradas. A casa não tinha forro e o que os separava
da chuva era a ténue proteção das telhas, assentes sobre uma armação de terças,
caibras e ripas. Tradicionalmente as telhas são dispostas em fiadas
sobrepostas, sendo a primeira presa com um arame e a última cimentada à
cumeeira. A função do arame, sobre a primeira fiada, é fundamental para evitar
que a casa fique destelhada, quando o vento sopra forte. Nessa noite o arame
não cumpriu a sua função! Foi uma noite de terror. Os filhos de Maria de Jesus
tinham uma diferença, entre si, de aproximadamente um ano, o que fazia com que
o mais velho tivesse nove e a mais nova, quase dois anos, de idade. João era o
terceiro filho e nessa noite acordou com a mãe a rezar a Nossa Senhora de
Fátima. Rezar na casa de João era normal, pois todas as noites se rezava o
terço, mas a mãe a rezar, durante a madrugada, era coisa que ele nunca tinha
visto. Levantou-se de mansinho e foi até ao quarto da mãe, averiguar se ela
estava bem. Estava muito frio e o vento entrava pela casa como se ela não
tivesse paredes. Aquilo pareceu-lhe muito estranho. Mesmo com meias e pijama,
bem grossos, João tremia dos pés à cabeça. Tremia de frio e de medo, ao ouvir
as rezas da mãe. A coisa assumiu proporções gigantesca quando viu a cama
desfeita e vazia. Agarrou-se à ombreira da porta para não cair e concentrou-se
no som da voz da mãe. O som vinha do outro extremo da casa, mas, estranhamente,
parecia vir do exterior. Pé ante pé, caminhou em direção à casa de banho.
Tratava-se de um cubículo, que ficava numa esquina da casa, onde uma sanita de
madeira tapava um buraco, que dava diretamente para a corte das vacas. O cheiro
do espaço era sempre desagradável. Quando se aproximou da porta sentiu que o
frio aumentava de intensidade. Passou pelo quarto e vestiu um roupão. Se a mãe
estava na casa de banho, não podia entrar. Colou o ouvido à porta e percebeu que
havia mais pessoas na casa de banho. O corpo ficou hirto com a surpresa e o
medo quase lhe tolheu os movimentos. «O que se passa na casa de banho?»
interrogou-se. Foi até ao quarto dos irmãos mais velhos, para os avisar, mas não
os encontrou na cama. A coisa estava cada vez mais estranha e uma sensação de
pânico começou a invadi-lo. Parecia que algo de sobrenatural se estava a passar
naquela casa.
Ficou durante alguns instantes parado,
junto à porta da casa de banho, sem saber bem o que fazer. Depois, com as mãos
a tremer, empurrou a porta, de forma resoluta. Definitivamente ele não estava
preparado para o espetáculo que presenciou. Teve que usar toda a sua força para
conseguir abrir a porta que se fechou, com estrondo, mal ele entrou. A mãe
estava em cima de uma cadeira, com os cabelos desgrenhados e revoltos pelo
vento, que desenhava figuras, no ar, com a combinação dela. A chuva fustigava-a,
violentamente, mas ela mantinha os braços esticados, segurando as telhas. Os
irmãos, de cabeça levantada, olhavam para cima, segurando a mãe e a cadeira.
Ainda antes que ele tivesse tempo de assimilar aquilo que tinha visto, soou um
trovão e a luz de um relâmpago invadiu o espaço, de forma fulgurante. Em contra
luz, as imagens da mãe e dos irmãos, assumiram um aspeto irrealista e
fantasmagórico. Vieram-lhe ao pensamento imagens do inferno que lhe tinham
mostrado na catequese. Instintivamente, protegeu os olhos com o braço.
O vento tinha conseguido levantar as
primeiras telhas da esquina da casa e ameaçava levá-las todas. Só a
persistência e a coragem da mãe tinham impedido que tal tivesse acontecido.
Quando o dia amanheceu o vento amainou e eles puderam descansar. A mãe assumiu
a lida da casa, como se tivesse dormido a noite inteira. Entretanto, João foi
incumbido de ir à aldeia falar com o picheleiro, para vir colocar a telhas que
tinham voado e prendê-las com cimento. Isso resolvia o problema mas criava
outro: se fosse necessário levantar as telhas elas teriam de ser partidas.
Quando saíram à rua estavam à espera de ver as telhas todas desfeitas em cacos,
mas algo de extraordinário tinha acontecido. O vento tinha levantado as telhas
do telhado, depositando as mesmas, dispersas pelo campo, de forma tão suave que
nenhuma delas se tinha danificado.
«Isto
foi graças a Nossa Senhora de Fátima!» Exclamou a mãe, com os olhos rasos de
água.
Passado o momento de emoção, que tomou
conta de toda a família, a vida continuou.
O Natal foi branco e frio. Era
delicioso vestir as capas de plástico e ir para a rua brincar com a neve.
Construíram um boneco de neve enorme e enfeitaram-no com roupas velhas e um
chapéu de palha rasgado. Parecia um espantalho! Finalmente o inverno chegou ao
fim. A natureza floria exuberante, parecendo querer, em uníssono, soltar um grito
de alegria: Chegou a primavera! As andorinhas regressaram à velha mina de água,
enchendo o ar de chilreios e voos acrobáticos. As árvores começaram a pintar-se
de verde, ao mesmo tempo que perdiam o rosa e banco da flor. Por todos os lados
os campos foram invadidos por pessoas, amanhando as terras, para serem
semeadas. Os pássaros chilreavam até ao cair da noite, buscando materiais para
construir os ninhos, com o mesmo carinho e afinco com que criariam os seus
filhos. As cerejeiras cobriram-se de vermelho e os ramos curvaram-se com o peso
dos cachos de cerejas maduras. Até as duas leitoas se juntaram à festa e deram
à luz duas ninhadas, uma de nove e outra de quinze leitões. Maria de jesus
estava radiante. As leitoas só tinham doze mamas por isso ela teve de retirar
três leitões de uma ninhada e adicioná-los à outra, apenas na hora da mamada,
está claro. Alguns dos leitões tiveram de ser amamentados a biberão, pois a
“adoção” não funcionava de forma perfeita. A verdade é que todos eles
sobreviveram.
Quando os leitões tinham três meses
sobreveio uma desgraça. Maria de Jesus era uma mulher poupada. O dinheiro que o
marido lhe enviava do estrangeiro era todo guardado. Apesar dos proventos da
agricultura não serem coisa de monta, com eles, ela conseguia alimentar e
vestir os filhos e ainda poupar algum do dinheiro das vendas dos produtos agrícolas.
Naturalmente que a venda dos leitões, das galinhas e dos ovos representavam um
grande contributo, pelo que cada um deles valia ouro para ela. Certo dia uma
das ninhadas estremalhou-se e, ao verem-se longe da mãe, alguns dos leitões
correram de forma tresloucada. Por azar, um deles caiu dentro de um poço.
Na zona de sequeiro o marido de Maria
de Jesus tinha aberto três poços, de sete metros de profundidade e dois de
diâmetro. Serviam para ir buscar água às profundezas e regar algumas plantas.
Acontece que apenas no inverno os poços estavam cheios. Assim que o calor
apertava o nível da água ficava lá em baixo, entre os quatro e os seis metros
de distância da boca do poço. Apesar da queda, o leitão não morreu e ficou a
nadar, de forma desesperada, lá no fundo. Maria de Jesus correu aflita tentando
acudir ao leitão.
«Ai
jesus, que desgraça, que o reco vai morrer!» Gritava, jogando as mãos para o
alto.
Entretanto, João e os dois irmãos mais
velhos juntaram-se a ela. Depois de alguma hesitação ela decidiu.
«Amarrem
uma corda à minha cintura e desçam-me até ao reco que eu apanho-o.»
Ainda não tinha acabado de falar e já
se preparava para descer. O poço estava equipado com um sarilho, ao invés de
uma picota, também conhecida localmente como gastalho. Ela queria que os filhos
manobrassem o sarilho, para a descer e depois a voltassem a subir, já com o porco
nos braços. João entrou em pânico. Ele já tinha manobrado o sarilho e não tinha
conseguido, sozinho, tirar um balde de água cheio, do fundo do poço. Mesmo
considerando que eram três, era óbvio que não iam conseguir tirar a mãe do
poço. Perante a passividade dos irmãos, João desatou aos gritos:
«Socorro
que a minha mãe vai cair ao poço.»
A mãe ao ver o desespero do filho
recuou e abraçou-o. Entretanto, concordaram todos que descer ao poço não era
uma boa ideia. A mãe, demonstrando uma grande presença de espírito, lembrou-se
de atar um balde à corda do sarilho e baixar o mesmo até à água, para ver se o
leitão entrava lá para dentro. Depois de várias tentativas percebeu-se que isso
era uma tarefa impossível. João reparou que o animal, já cansado de nadar, dobrava
as duas patas da frente, no bordo do balde, para se segurar.
«Vamos
puxar o balde que o reco vem pendurado.» Disse João.
A mãe olhou para ele com ar de dúvida,
mas naquela fase não tinham nada a perder e assim fizeram. Foi então que se deu
o milagre! Eles puxaram o balde, cheio de água, lentamente, para não fazer cair
o leitão, que se manteve pendurado, no mesmo, até ser retirado do poço. O
animal tremia de frio quando Maria de Jesus pegou nele. Ela secou-o e
esfregou-o com álcool, para o ajudar a aquecer e eliminar os germes da água do
poço.
A nossa vida, como a dos animais tem
estranhas formas de nos ensinar e aquele leitão aprendeu a lição. Ele, que
esteve quase a morrer afogado, tonou-se no mais forte da ninhada, sendo o que
rendeu maior valor, no momento da venda.
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