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BENGALAS NO AR



BENGALAS NO AR

Ninguém sabe como tudo começou. A verdade é que nunca se sabia como a rixas começavam.
Era o fim-de-semana das festividades em honra de são Roque, padroeiro de uma pequena aldeia do norte de Portugal. As comemorações prolongavam-se por todo o fim-de-semana, começando na sexta-feira e terminando na segunda. Os dias mais fortes eram o sábado e o domingo. O sábado era conhecido como o dia profano. As velhotas da aldeia e as famílias mais conservadoras, achavam mal os festejos ao sábado e o pároco da freguesia já por várias vezes tentara impedi-las. Fora sempre em vão. Naquele pequena aldeia a tradição também combatia o progresso e a inovação, duas forças que se confrontavam à escala mundial. O resultado tinha sido a manutenção do sábado como o dia profano.
A aldeia acordava com uma salva de morteiros, no sábado de manhã, apesar de na sexta-feira se ter dançado noite dentro, ao som do piqué. Era o início oficial das festividades. No sábado de manhã havia a feira de gado, que era um espetáculo único. No centro do recinto, ou em carros estacionados nas redondezas, eram expostas vacas, cavalos, burros, cabras, ovelhas, porcos, enfim, toda uma sorte de animais que eram transacionados um ambiente peculiar. A mistura dos sons dos animais com a vozaria dos homens tinha o seu que de musicalidade. Os animais, irrequietos, devido ao calor, sacudiam a mosca com o rabo ou agitando as cabeças. As juntas de vacas jungidas eram as mais barulhentas pois tinham penduradas, ao pescoço, as campainhas que chocalhavam violentamente com os movimentos bruscos. Era um espetáculo que impunha respeito, mas, ao mesmo tempo, encantador.
Para Manuel era a primeira festa. Tinha regressado de Angola no outono e passava o primeiro verão na aldeia. Sentia como se o tivessem levado a um ritual de iniciação. Passear com o pai por entre os animais foi uma experiência inesquecível. Na sua imaginação via, a qualquer momento, um cavalo largar-lhe um coice ou uma vaca dar-lhe uma cornada. Apesar dos seus receios, atravessaram o recinto sem que nada de mal lhes acontecesse. Em sítios estratégicos, estavam colocadas as barracas das comidas e bebidas, as doceiras e alguns vendedores ambulantes. Pararam para se refrescarem, pois a manhã estava muito quente: adivinhava-se um dia da grande canícula.
Por volta do meio-dia os feirantes desmobilizaram e entrou em cena a equipa de limpeza.  O recinto estava pronto para as competições. A tarde de sábado era desportiva. Existiam corridas de cavalos, burros, pedestres e vários jogos: o jogo da malha, o poste encerado, a quebra da bilha, a corrida de sacos, etc. O cenário era de uma espécie de mini jogos populares. O povo concentrava-se à volta do recinto ou da estrada onde se realizavam as corridas e a tarde era passada em grande euforia. Tinham vindo pessoas de todos os lados, carregando merendas, e garrafões de vinho. Na bica, existia quase sempre fila para encher as garrafas ou dessedentar os mais sequiosos. Ao fim da tarde, os que viviam perto retiraram-se para o jantar e os de longe acamparam e destaparam os cestos da comida: Era hora do repasto. Ao início da noite regressariam todos ao recinto.
Manuel estava extasiado. Em África existiam festejos bem interessantes e coloridos, mas os da sua aldeia eram mais pitorescos e tinham uma sonoridade à qual ele não estava acostumado. Era essa diferença que o cativava: a novidade mantinha os seus sentidos presos! O caminho até casa estava povoado de magotes de pessoas. As famílias, vizinhos ou amigos, caminhavam em pequenos grupos, em direção a casa. A aldeia ficava num alto e a estrada descia em direção aos outros povoados ou às casas dispersas. Vista de cima e ao longe, a paisagem assemelhava-se, a um campo semeado de pequenos tufos coloridos. As pessoas caminhavam caladas ou conversando em voz baixa, o que representava um grande contraste com o bulício da tarde. O crepúsculo, aquela hora mágica, em que a noite cresce e o dia se esvai, apanhou-os quase a chegar a casa. O jantar estava pronto e foi servido assim que chagaram. As irmãs e a mãe tinham vindo para casa mais cedo e trataram de tudo. Era essa a tradição da terra. O jantar também era de festa e o cabrito, que tinha ficado a assar no forno a lenha, estava divinal.
Manuel era o mais novo. O irmão mais velho e as irmãs já tinham falado com os pais e iriam todos ao baile. A noite seria abrilhantada pela atuação de um conjunto local muito afamado, pelo que a expetativa era grande. Chegaram à aldeia às vinte e duas e trinta e, apesar da atuação apenas começar às onze horas, o recinto estava à pinha. A irmã e o irmão mais velho foram ter com o namorado e a namorada. Manuel, de quinze anos de idade cabia-lhe ficar com a irmã de dezasseis, que não estava autorizada a namorar. Ele era o seu guardião! A irmã tinha corpo de mulher: uma mulher bonita e elegante. Assim, não tardou nada para que os jovens, sem par, começarem a rondar. Ela não estava interessada em nenhum deles e puxou o irmão pelo braço para o meio do recinto. Dançaram ao som da música do piqué, enquanto o conjunto afinava os instrumentos. Durante mais de uma hora ele e a irmã desfilaram pelo recinto. Eram dois jovens no corpo de dois adultos.
«Vamos parar cinco minutos.» Disse a irmã.
Nessa altura, já o conjunto tocava há mais de meia hora. Pelo canto do olho ele viu o olhar da irmã ficar preso no jovem que acabava de chegar. Apesar disso, não disse nada. A irmã não estava impedida de dançar e não seria ele que lhe iria estragar a diversão. Lançou um olhar pelo recinto procurando uma jovem que lhe interessasse. A irmã toucou-lhe no braço e aproximou-se do seu ouvido.
«Vou dançar. O pai não tem de saber disso.»
Ele encolheu os ombros e acenou com a cabeça. A irmã tinha encontrado o seu par.
«Eu vou dar uma volta por aí.»
«Ok. Encontramo-nos aqui à uma da manhã.» Disse ela.
A densidade de pessoas, à volta do recinto, era tão grande que se tornava difícil passar de um lado para o outro. Manuel furou por entre a multidão até sentir que alguém lhe puxava pelo braço.
«Olá Manuel!»
Era a sua catequista, que estava acompanhada pelo namorado. Manuel era o herói dela, não só por ser um excelente aluno, mas porque ela delirava com o sotaque africano dele.
«Olá Tereza.»
«Chega aqui que quero apresentar-te as minhas primas.»
Atrás dela estavam duas jovens, uma loira, outra morena. A morena escondia-se por detrás da irmã que, apesar de mais nova era mais atrevida.
«A minha irmã acha que tu és muito bonito.» Disse a loira, que se chamava Rosa.
Lúcia, a morena deu um beliscão à irmã, enquanto este se desfazia em gargalhadas.
«Magoaste-me.»
«É para aprenderes a ficar calada.» Disse Lúcia, corada até à raiz dos cabelos.
Lúcia tinha dezasseis anos e o corpo de uma mulher. Os olhos castanhos eram enormes e luminosos. As calças de ganga, muito justas, mostravam um corpo bem feito e a blusa branca, apesar de larga, não disfarçava o volume dos seios redondos, que espreitavam pelo decote como uma moça casadoira à janela. Depois de um início envergonhado, ela demonstrou ser uma excelente companhia. Era uma moça culta e bem-humorada. Falava sobre todos os assuntos e até contava umas piadas. Manuel estava encantado.
«Vamos dançar?» Convidou ele.
Ela não se fez rogada. O ritmo era africano e ele demonstrou os seus dotes, conduzindo-a com destreza. Ela dançava bastante bem e apanhou o ritmo dele com facilidade. Não tardou muito e eram o centro das atenções. Mais nenhum homem dançava daquela forma. O ritmo de África estava dentro dele. A música mudou de ritmo e ficou lenta e romântica. Ele aproximou-se dela e, para sua surpresa, ela pressionou o corpo contra o dele. De imediato, a sua masculinidade falou mais alto. Ela afastou o rosto dele, sorriu e piscou-lhe o olho. Depois, encostou o rosto e pressionou ainda mais o corpo contra o dele, mexendo-se ligeiramente. Aquilo estava a deixá-lo louco. Sem se conseguir controlar beijou-lhe o pescoço. Ela retribui-lhe o beijo. Depois disso a situação descontrolou-se. Os lábios deles encontraram-se, apresentaram-se e conheceram-se de todas as formas. For fim entreabriram-se e deixaram que as línguas se juntassem ao festim. Enquanto os corpos se moviam lentamente ao som da música, as línguas envolveram-se numa luta frenética, parecendo que cada uma queria submeter a outra. Finalmente, cansadas e satisfeitas, entregaram-se a carícias suaves e gostosas, até que a música parou e eles ficaram quase sozinhos no meio do recinto, envolvidos num beijo, observados peles restantes pares e pelos mais velhos, que estavam colocados à volta do recinto. Foi um momento embaraçante. Lúcia foi quem primeiro tomou consciência da situação.
«Vamos!» Disse, puxando-o pelo braço.
Manuel seguiu-a sem pestanejar. Ela levou-o para longe da confusão. Estavam debaixo do alpendre da catequista, sós e num recanto escuro, sobre o qual, quem passasse na rua, não tinha visibilidade. Beijaram-se e as mãos começaram a explorar o corpo do parceiro. Ela não se retraiu quando ele a tocou nas partes intimas, mostrando-lhe o prazer que sentia em ser tocada. Para surpresa dele ela foi mais além e acariciou-o também. Beijaram-se e tocaram-se até quase perderem o controlo. Manuel estava louco e fora de si.
«Não!» Disse ela.
Muito a custo ele parou, e olhou para ela com surpresa. Ele tinha sido iniciado no sexo, por uma africana, aos treze anos, mas ela era virgem. Perante a surpresa dele ela esclareceu-o.
«Vou dar-te o teu momento de prazer, mas eu quero continuar virgem.»
Pela cabeça passaram-lhes umas quantas formas de fazerem amor sem que ela perdesse a virgindade, mas conteve-se. Ele tinha estado muitas vezes intimamente com uma mulher bastante mais velha e tinha aprendido umas coisas, mas isso para uma moça da aldeia era, seguramente, uma coisa impensável. Usando as mãos com mestria ela satisfez o jovem, enquanto permitia que ele lhe acariciasse os seios. Foi um momento sublime! Apesar da sua experiência passada, viveu o momento de forma intensa e com um prazer indescritível. No fim ela beijou-o e conduziu-o até ao recinto. Dançaram durante o resto da noite e ao fim desta, trocavam juras de amor eterno. Foi com tristeza que perceberam que eram horas de regressar. A irmã não estava no local combinado e ele esperou por ela sem desesperar. Estava a deliciar-se com cada segundo! No caminho de regresso, os irmãos, que tinham percebido o que se passava, brincaram com ele e percorreram os dois quilómetros que a casa distava da aldeia sem que a distância lhes pesasse.
Apesar do estado de excitação em que estava, dormiu que nem um anjo. No dia seguinte, acordou de excelente bom humor e só pensava em ir ter com ela. A missa era à tarde, antes da procissão, que começava às quinze horas. Ele mal podia esperar pelo evento. Saiu de casa mais cedo, com a desculpa de que queria ir ver os andores e foi ao encontro de Lúcia. Quando chegou ao largo da igreja ficou boquiaberto. Nunca tinha imaginado que os andores fossem tão bonitos. Os santos tinham sido colocados em estruturas de madeira, que depois foram revestidas de panos de cores variadas. As sedas misturavam-se com os veludos, os arminhos, os cetins e as rendas, emprestando ao conjunto uma espetacularidade que era realçada pelas pérolas, espelhos e dourados. Manuel percorreu lentamente o adro da igreja, admirando cada um dos andores, de forma demorada. Outra das particularidades eram os mantos dos santos, que para além de belos e coloridos, estavam pejados de pérolas, sobretudo o de nossa senhora. Dois dos andores sobressaiam pela sua dimensão: tinham cinco metros de altura e iriam ser carregados por 24 pessoas e equilibrado por mais oito, que através de cordas presas à estrutura, ajudavam a manter o andor direito. Lúcia apanhou-o de surpresa e apareceu por detrás, tapando-lhe os olhos. Foi um reencontro emotivo.
A procissão percorreu, de forma compassada as principais ruas da aldeia, indo dar a volta à capela e retornado à igreja. Ao fim de duas horas a procissão recolheu ao adro e os andores foram poisados no chão, começando de imediato a sua desmontagem. Lúcia levou Manuel para casa da prima e entregaram-se às carícias, um do outro, até serem interrompidos pela prima. Saíram e foram até ao recinto do baile, onde o piqué já desfilava música, para os dançarinos mais afoitos. À noite, como de costume, seria a vez de atuar um novo conjunto. Subitamente, num dos cantos do recinto, junto a uma das barracas de bebidas, gerou-se um grande burburinho. Manuel quis ir ver o que se passava, mas Lúcia afastou-o do local e levou-o para cima do muro, que ficava na extremidade do recinto. Manuel quis perceber a razão de existirem tantas bengalas no ar. Ela explicou-lhe que nas festas da aldeia era muito comum as pessoas que estavam desavindas cruzarem-se e, depois de uns copos de vinho, mediam-se de razões. Normalmente, a questão ficava por algumas agressões verbais, mas ocasionalmente chegavam a vias de facto. Tinha sido o caso. Duas famílias rivais, muito numerosas, tinham-se cruzado e, depois de acesa discussão, um dos mais novos abriu a cabeça do rival, com uma bengala. De imediato, se cruzaram os paus. A bengalada rachou mais umas cabeças e partiu um ou outro braço, até a GNR intervir e colocar fim à rixa. Essa era outra das facetas da festa, que era novidade para Manuel. Lúcia explicou-lhe que convinha ficar longe da rixa, porque quando a bengalada começava, a pancada podia cair em que estivesse por perto, ainda que nada tivesse a ver com o assunto.
Manuel só foi para casa quando a festa terminou e, mesmo assim, os seus lábios pareciam estar colados aos de Lúcia. Infelizmente, ela partia para Lisboa no dia seguinte e foi com o coração apertado que ele se despediu. Prometeram ficar em contacto, mas o destino tecia a sua própria teia.

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