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A CARTA


A CARTA

Fazia muitos anos que ele tinha partido. O regresso era penoso, mas aos catorze anos de idade até o impossível parece estar ao nosso alcance. As suas lembranças da aldeia eram vagas e não suportadas pela realidade que veio encontrar. Em dez anos muita coisa havia mudado. Aquilo que mais lhe custou foi lidar com a mentalidade tacanha da aldeia. Tinha crescido em Luanda e no meio de pessoas que olhavam o mundo com outra perspetiva. Pertencia ao grupo dos famosos Retornados: os espoliados do vinte e cinco de Abril de 1975. Adaptou-se.
Não tardou muito em destacar-se. Era dos poucos jovens que continuou a estudar após a conclusão do nono ano, era um aluno excecional e tinha grande iniciativa. O seu ponto fraco eram as mulheres. Tinha estudado num seminário e isso tinha criado um afastamento em relação ao sexo oposto, que lhe parecia insanável à luz dos catorze anos. Aos dezasseis, embora muita coisa tivesse mudado, ele continuava a sentir-se intimidado pelas jovens.
A primeira paixão atingiu-o com um relâmpago. Ficou desconcertado. Incapaz de comunicar o que sentia… Ela era linda! Os cabelos castanhos-claros, olhos azuis, o sorriso, o rosto claro, ligeiramente curtido pelo sol: tudo lhe parecia perfeito. Incapaz de falar com ela, cara a cara, mas, não conseguindo controlar o ímpeto de lhe confessar o seu amor, escreveu-lhe uma carta. Oh, a ingenuidade dos dezasseis anos! Não tardou muito toda a aldeia sabia da carta. Velhos ou novos, homens ou mulheres, todos se riram. A humilhação do outro é por vezes celebrada como pontificação da nossa glória. «Este rapaz é um tolo!» Diziam à boca cheia. Havia, no entanto, quem classificasse a carta como um poema de amor escrito em prosa!
«O rapaz que te dedicou palavras tão bonitas só pode gostar muito de ti. É uma pena que não o queiras.» Disse a avó à jovem.
Ela sorriu e limitou-se e encolher os ombros. Apenas tinha olhos para o Francisco: um rapaz alto e bem-parecido, um pouco mais velho, que trabalhava como trolha. A mãe bem lhe dizia que ele não tinha futuro, mas ela sentia-se mulher ao lado dele. Sobretudo sentia-se uma mulher invejada.
Consciente de que era alvo de chacota, seguiu o conselho da mãe: ignorou-a. A verdade é que passado pouco tempo o assunto estava esquecido. Pelo menos foi o que pensou quando deixou de ouvir os risos nas costas ou ver os olhares dissimulados. Quando recebeu o primeiro pedido não queria acreditar.
«Preciso que me ajudes a escrever uma dedicatória no cartão de aniversário da minha namorada.»
Ele olhou para o amigo perplexo. Foi quando ficou a saber que as moças da aldeia sonhavam receber uma carta assim e os rapazes invejavam a sua arte para a escrever. Soltou uma gargalhada. A situação era risível! Enquanto ele sofria em silêncio, tentando apagar a chama do amor que lhe consumia o peito, a aldeia tinha-o promovido de tolo a herói.

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