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INSPIRAÇÃO



INSPIRAÇÃO

Irremediavelmente perdido na alvura que se estendia à sua frente, num indeciso interlúdio entre a prosa e a poesia, lutava com o Tema. Desejava ardentemente ver-lhe a face, conhecer-lhe o sorriso, saber como descrevê-lo. Mais um passo! Sentiu que ele estava tão perto que se estendesse a mão podia tocar-lhe. Nada. Apenas o vazio… O esforço começava mostrar os seus efeitos. Uma gota de suor escorreu-lhe pela fronte.

As imagens, plenas de conteúdo, sucediam-se a uma velocidade vertiginosa, como se passassem numa tela, sem que conseguisse fixar-se em nenhuma. Estava em transe! Estaria dentro ou fora da tela?

Aquele ruído… Sentiu-se puxado.

A cadeira onde estava sentado tornou-se real. Piscou os olhos. Sem rosto nem nome, o Tema teimava em esconder-se na alvura da superfície plana, que o ofuscava. Estava na hora! Olhou à sua volta. Precisava de uma referência! Um mote!

O pequeno quadrado de papel amarelo, colado na lateral da impressora fulminou-o. A inscrição dizia: Foral.

Endireitou as costas e verteu sobre a folha uma torrente de palavras recheadas de hipérboles e outras figuras, numa estratégia narrativa de homo-autodiegese, intercalada com alguns diálogos. O milagre da criação tinha acontecido!

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