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À PEDRADA



À PEDRADA

Existem acontecimentos que não tem explicação. Seguramente que o estudo aprofundado dos mesmos a permitirá encontrar, mas ela não está ao alcance dos simples mortais. O caro leitor perceberá o alcance destas palavras se me acompanhar ao longo das páginas que se seguem. Narro os factos, tal como me foram contados: na primeira pessoa e de forma o mais desapaixonada possível.

O dia de Outono estava lindo, mas fresco. Já se sentia aquela aragem, que com o cair da noite se torna cortante como o gume de uma faca. Entra-nos por todos os lados e aferroa-nos o corpo, como aguilhões finos e afiados. As aulas, como todos os dias, terminaram às três da tarde. Os rapazes apressaram-se a ir para casa. A escola ficava em Vila Marim, que era a sede da freguesia, mas acolhia também os alunos de Quintela. Os alunos, da primeira à quarta classe, estavam sentados na mesma sala e por isso conheciam as debilidades uns dos outros. Naquele dia, dois dos rapazes mais velhos envolveram-se numa discussão, cujo teor ficou definitivamente por deslindar. Chegados ao lago da capela os alunos de Vila Marim separavam-se dos de Quintela e cada um seguiu o seu caminho. O meu irmão mais velho, previu o pior e ficou à espera do amigo de Quintela. Juntou os alunos das primeiras duas classes e mandou-os correr estrada fora. Era sempre a descer até ao Monte da Coelha. Tratava-se de um monte que subia a pique, numa curva da estrada e que funcionava como uma autêntica muralha em relação a esta.
Carregamos as sacolas dos mais velhos, com os livros e as lousas e só paramos depois de subir o monte. Quando estávamos a chegar a primeira curva da estrada ainda ouvimos.
«Vamos correr os de Quintela à pedrada!»
Acontecia, ocasionalmente, os rapazes de Vila Marim correrem os de Quintela à pedrada, sem nenhuma razão especial. Era um costume tão antigo, que as histórias dessas aventuras tinham sido passadas de pais para filhos, ao longo das gerações, como se fosse uma coisa condenável, mas simultaneamente natural. Nenhuma autoridade intervinha. Ninguém se queixava ao Mestre e os pais limitavam-se a cuidar das feridas dos filhos. Eram a materialização de uma rivalidade secular!
As pedras começavam a chover de um lado para o outro e a maior habilidade não estava tanto na pontaria, mas na capacidade de evitar as pedras do adversário. Os de Quintela aguentaram os rivais alguns minutos, para dar tempo aos mais novos de subir o monte, depois fugiam a sete léguas. O refúgio era o monte da Coelha e a partir daí as posições invertiam-se e eram os de Vila Maria que estavam por baixo. Nesse ponto, o impasse mantinha-se até que os de Vila Marim desistiam e iam todos para casa. Eu estava na segunda classe e estava cheio de medo. Apesar disso, tinha poisado a minha sacola e a do meu irmão e tinha juntado um monte de pedras. Estava acostumado a brincar com pedras e um dos divertimentos que tínhamos, entre irmãos, era tentar acertar nas árvores a distâncias razoáveis. Assim que os de Vila Marim ficaram no sopé da montanha eu comecei a alvejá-los. Eles perceberam rapidamente que tinham de se afastar pois as minhas pedradas eram mais certeiras do que a média.
Naquele dia eles não desistiram facilmente, como de costume e ao fim de meia hora o impasse ainda se mantinha, apesar de já ter atingido dois deles nas pernas e de terem ficado magoados. Nessa altura um dos rapazes de Quintela notou que faltavam quatro dos de Vila Marim.
«O Arlindo Maluco e mais três não estão lá em baixo. Lembro-me que ele nos tinha ameaçado que da próxima vez que fossemos corridos à pedra, daria a volta pela estrada da Coelha e apanhava-nos pelas costas.»
O mais velho do grupo decidiu rapidamente o que fazer. Eu, ele, o meu irmão e um outro iríamos cortar-lhes o caminho.
«O meu irmão é demasiado novo para ir connosco.»
«Não te preocupes. Nós vamos cortar-lhe o caminho num local onde estaremos por cima deles e precisamos da pontaria do teu irmão para os fazer recuar, sobretudo ao Arlindo.»
«O problema é esse mesmo. Ele não se incomoda nem que leve duas ou três pedradas.» Disse o meu irmão.
O líder dobrou-se sobre mim, segurou-me os ombros e percebeu que eu estava a tremer. O Arlindo era efetivamente meio maluco, mas era também muito mais velho que todos os outros. Tinha portanto um corpo de adulto, mas sobretudo era de uma família de pessoas grandes. Para mim ele era um gigante! Valdemar sorriu-me e disse.
«Quando eu te disser preciso que acertes na cabeça do Arlindo. És capaz disso?»
Uma pedrada na cabeça podia matá-lo e eu não queria que isso acontecesse. Estava com tanto medo que apenas queria fugir dali para fora. Valdemar sacudiu-me os ombros.
«É a nossa vida que está em causa. Se não o travarmos ele vai partir-nos todos.»
«Mas eu não quero matá-lo!»
«Ele tem a cabeça dura. Uma pedrada não vai matá-lo, mas assim que virem o sangue a jorrar eles vão fugir todos!»
Não estava muito convencido de querer fazer aquilo e sobretudo de ser capaz de o fazer. Mas o incentivo do grupo e o olhar de admiração de todos por eu ter sido o eleito, para travar o Arlindo, acabou por me convencer. Corri atrás dos mais velhos o mais que podia, da mesma forma que normalmente corria atrás dos meus irmãos. Quando chegamos ao local vimos o Arlindo a aparecer na dobra da curva do caminho. Nós estávamos numa pequena elevação e eles tinham de ser travados antes de a passar. Eu tinha escolhido quatro pedras não muito maiores do que uma noz. Eram seixos polidos, mas que me permitiam ser muito mais certeiro que com as pedras irregulares, devido ao menor atrito.
«Agora!» Disse Valdemar.
Tomei posição e apontei para o centro do corpo. Eu não conseguia acertar-lhe na cabeça com ele a correr, por isso tinha de o fazer parar. Ele sentiu o impacto da pedrada no peito e levantou a cabeça, estancando a corrida. Nesse momento a pedra saiu da minha mão dirigida à testa dele. Tinha imprimido pouca velocidade à pedra pois queria feri-lo sem o magoar demasiado. Quando sentiu a pancada ele pareceu surpreendido e deu dois passos para trás, encostando-se à parede, que ladeava o caminho. Nesse momento os outros três chegaram ao pé dele e foram recebidos com uma chuva de pedra. Eu acertei no abdómen de um deles. Entretanto a cabeça do Arlindo jorrava sangue sem parar e ele tirou a camisa para o estancar. Os outros rodearam-no e foram os quatro embora, jurando vingança. Nós tínhamos-nos mantido escondidos e eles nunca ficaram a saber quem os tinha atingido. Os rapazes de Quintela ou por respeito, ou por medo de levar uns tabefes do Valdemar, cumpriram voto de silêncio.
Eu e o meu irmão contamos a história em casa e a minha mãe ficou furiosa e aflita. O meu pai deu-nos uma grande repreensão, mas pude perceber que estava orgulhoso do que tínhamos feito.
«Aquilo que fizeram é inaceitável. No entanto, se houver problemas vocês dizem que aturam em legítima defesa.»
O facto gerou grande alvoroço na aldeia, pois tiveram de levar o Arlindo ao hospital. Os pais falaram com o Mestre e este levantou a questão na escola. Houve uma grande discussão e muitas acusações, mas como não se sabia quem punir o mestre anunciou que os rapazes de Quintela iam todos ficar de castigo. Nessa altura lembrei-me das palavras do meu pai. Podia falar à vontade que ninguém ia suspeitar que um miúdo, franzino como eu, tinha sido o rapaz da pedrada certeira.
«Mestre, aquilo que aconteceu está errado. Mas apenas aconteceu porque os rapazes de Quintela são sistematicamente corridos à pedrada, pelos de Vila Marim e têm de fugir para não serem atingidos. Por vezes respondem defendendo-se. Por azar desta vez o Arlindo ficou com a cabeça partida, mas estamos cansados de levar pedradas deles e nessa altura nenhum pai veio aqui fazer queixa. Nós apenas nos limitamos a defender-nos.»
Eu era um fedelho, mas era o melhor aluno da classe e o mestre ficou impressionado com a intervenção. Os rapazes de Vila Marim não conseguiram negar que tinham sido eles a iniciar a contenda e que já o haviam feito outras vezes. Perante isto, o Mestre encerrou a questão e disse aos pais que se quisessem dar continuidade ao assunto, tinham que fazer queixa às autoridades. O assunto ficou por ali e essa foi a última vez que os rapazes de Quintela foram corridos à pedrada. Valdemar não era um aluno brilhante mas teria dado um bom estratega militar.


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