QUANDO
O PASSADO TE ENCONTRA
Desceu
as escadas do metro cambaleante. Sentia-se vazio. O álcool era a sua única
companhia. Tudo na sua vida se tinha esfumado. O emprego fazia um ano que se
tinha eclipsado. Era a crise, diziam! O mercado tinha-lhe colocado a sua
chancela: aos quarenta e nove anos, era considerado velho. A brilhante carreira
de gestor era irrelevante. Tudo na sua vida dele era irrelevante. Ele também
era irrelevante. Pelo menos foi aquilo que a mulher lhe disse, essa manhã, antes
de o abandonar e após alguns meses de críticas e cobranças, que tornaram a vida
um suplício. Ele tinha deixado de ter condições para lhe dar aquilo que ela
queria. Tinha investido tudo nela, mas o investimento revelara-se mau.
«Não foi para ter este tipo de vida que casei
contigo!» Dissera Filipa, ao partir.
Tinha
sido uma despedia cruel. Porque não a conseguia odiar? Como podia amá-la depois
de tudo? O mesmo amor que o tinha ajudado a manter a cabeça erguida iria conduzi-lo
às profundezas do inferno. Já na plataforma encostou-se a um canto à espera do
metro. Os quatro jovens rodearam-no e roubaram-lhe a carteira. Esboçou alguma resistência,
mas isso apenas serviu para ser premiado com alguns socos e pontapés. Estava
sozinho, no meio da multidão. Ninguém viu nada, ou será que ninguém tinha
querido ver? O casaco e a gravata tinham desaparecido, juntamente com a
carteira e a camisa estava toda rasgada e suja de sangue. Encolheu os ombros: para
onde ia não precisava de carteira. Tentou colocar-se de pé, mas o comboio foi
mais rápido do que ele. Encostou-se à coluna, mesmo junto à linha: tinha que
estar pronto.
«Olá Pedro!»
Coseu-se
com a coluna. As pernas tremiam e só por milagre não caiu. Não era possível!
Aquela mulher não podia estar ali. Era uma partida da sua imaginação. Tinha-se
enrolado com ela na faculdade, mas tinha-a desprezado. Era uma drogada, dona de
uma beleza assinalável e um corpo escultural, mas era coquete e fútil! Tinha
ido para a faculdade à procura de marido. Ele estava fora! Fechou os olhos e
abanou a cabeça, para afastar a miragem, mas o sorriso dela continuava ali.
«Não te lembras de mim?» Insistiu Fátima.
«És mesmo tu?»
«Sim.»
«Como podes sequer falar comigo, depois de
tudo o que te fiz?»
«Eu era um ser desprezível.»
«Não. Desprezível fui eu e continuo a sê-lo.
Agora para além de desprezível sou também desprezável e desprezado.»
«Estás enganado. Tu és apenas uma vítima da
vida, como eu fui há trinta anos atrás. Mas temos que usar as pancadas que a
vida nos dá como um despertar para outras escolhas.»
«Isso é apenas uma desculpa. Nós determinamos
a nossa vida e ela tem de valer a pena, senão...»
«Todas as vidas valem a pena. Não podes é
julgar a vida toda por um episódio apenas, pois isso torna-a apenas igual a
esse episódio: boa ou má. Tens de julgar a vida pelo seu todo e, sobretudo, por
aquilo que tu és capaz de fazer dela.»
Pedro
ficou a olhar para ela com uma máscara de espanto. Fátima tinha-se tornado uma
mulher sábia! Mas ele precisava muito mais do que palavras bonitas. Se ela
soubesse a sua história!
Ela
não precisava de ouvir a história da vida dele. Tinha-se inteirado dela, fazia
algum tempo. Tinha tomado a decisão de o procurar consciente de tudo. O ruído
no túnel anunciou a aproximação das carruagens. Pedro colocou as mãos contra a
coluna e preparou-se. No último instante Fátima adivinhou as intenções dele e
empurrou-o para o lado. Estava demasiado bêbado para resistir e caiu. A polícia
tomou conta da ocorrência e como não tinha documentos foi levado para a
esquadra.
Chorou
baba e ranho durante o resto da tarde e uma parte da noite, até que a exaustão
o venceu. Acordou de alma lavada. As palavras de Fátima martelavam-lhe a cabeça.
A carteira, embora sem dinheiro, tinha sido jogada no lixo e encontrada por
alguém. Essa manhã tinha sido entregue na esquadra por uma alma caridosa. Não
existia razão para o reter mais tempo. Foi libertado. Desejou que ela estivesse
à sua espera. Rui-se de si próprio e do ridículo pensamento.
Estava
com um aspeto lastimável, apesar da camisa lavada. Precisava de cuidar da
aparência e ganhar força e coragem para cuidar do resto. Dirigiu-se ao
multibanco. Precisava de dinheiro para o táxi. Tinha de ir para casa, agora era
apenas a sua casa. Esfregou os olhos para ter a certeza que estava a ver bem.
Fátima estava encostada a um carro, de braços cruzados, ao lado da praça dos
táxis.
«Vamos?» Disse com simplicidade.
Pedro
limitou-se a assentir com a cabeça. Tinha ficado com a voz embargada. Era um náufrago
que lutava contas ondas alterosas e ela, o tronco que passou ao seu lado. A sua
tábua de salvação. Agarrou-se, desesperadamente, ao tronco e fechou os olhos. Afinal
a vida não tinha terminado, apenas tinha mudado de rumo.
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