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O ABRAÇO


O ABRAÇO


O homem abandonou o quarto do hospital cambaleante. A raiva e o desespero tinham-lhe aprisionado o coração. Nada mais fazia sentido. No leito de morte ela fizera-o prometer que ele continuaria a sua vida, mas ela tinha partido e ele, sozinho, não se sentia capaz de cumprir a promessa. Sem ela não existia vida. Sem ela não existia nada… Cego pelo desespero tropeçou no banco e antes de se estatelar no chão foi colhido por um braço forte. Instintivamente agarrou-se para não cair e envolveu o desconhecido num abraço, soluçante e sufocante.
O desconhecido retraiu-se ao ser abraçado. O desespero daquele soluço, no seu ouvido, comoveu-o e retribuiu o abraço. Abraçaram-se como se não houvesse amanhã. Talvez nunca tenha existido um abraço tão sincero, tão desinteressado e tão fraternal. Nada unia aqueles dois homens a não ser a partilha da dor de um deles. A estranha partilha da dor com um desconhecido.
Depois do falecimento da esposa o seu coração tinha murchado, mas aquele abraço restituiu-lhe a vida. O coração que palpitava no peito daquele estranho, batendo, acelerado devido ao insólito da situação, recordou-lhe a vida e a promessa feita no leito de morte. Tinha de continuar a viver…
Lentamente afastou-se do estranho, que continuava a apertá-lo contra o seu peito como se fossem amigos íntimos. Olhou para ele com um sorriso, que era mais um esgar de dor. A dor que ainda lhe consumia a alma, mas, estranhamente, o desespero tinha desaparecido do seu olhar.
«Desculpe e obrigado.»
A mão apertou o ombro do desconhecido e sem dizer mais nada deu meia volta e partiu.

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