UM SIMPLES ANEL NO SEU DEDO
Susteve-se a meio caminho, de improviso, deu meia volta e
correu em direção ao mar. Paulo imobilizou-se, de pé no areal. Ficou suspenso
na imagem dela, em contraluz, vendo-a correr: primeiro desenhando os pés na
espuma lisa que cobria a praia, depois contra as ondas, às arrancadas e
arrecuas, bailando sobre os rolos que se desfaziam na areia, enquanto o corpo
estremecia, com os salpicos lhe atingiam as pernas. Uma gargalhada… Toda ela
era riso.
Uma vaga mais forte espraiou-se ao longo da areia,
foram-se as marcas que artisticamente a pejavam e levou consigo as medusas que
a maré tinha abandonado, qual esponja em quadro de ardósia nega. Eram às
centenas, desfeitas, jogadas sem vida, ao acaso, no areal. Tantas como Paulo
nunca tinha visto. O vento agreste e sibilante secara-lhes o corpo, passou-lhes
por cima, com a sua carga de areia e sal, varrendo o areal contra as dunas, sem
que nada lhe resistisse: algas secas ou vestígios de pegada.
Lisa virou-se bruscamente na cama dando um safanão na
roupa que os cobria. Quim continuou a ler impassível.
«Ligaste o despertador?»
«Hum.»
«Hum o que, fiz-te uma pergunta!»
«O que?»
«O despertador,
Quim. O despertador! Para que horas o ligaste?»
“… Um
nevoeiro sebastiânico levantava-se do mar, qual vapor de uma caldeira de águas
ferventes e invadia a costa. Era uma mortalha fresca, quase matinal, que
estendia os seus tentáculos pelas dunas, embora, cravada no céu, Vésper já
despontasse, exibindo o seu brilho, frio e solitário…”
«Desculpa mas não estou tranquila. Preciso de ter a
certeza. Podes passar-me o despertador?»
«O despertador!?»
«Sim, o despertador Quim. Está do teu lado. Não queres
que passe por cima de ti par o ir buscar. Irra que tu és valente!»
A
imagem dela rolando por cima dele trespassou-lhe a mente como um relâmpago.
Apressou-se a satisfazê-la.
«Toma. Estás satisfeita?»
«Obrigada! Pronto, podes continuar a ler que não te
incomodo mais. Pois, eu tinha razão! Esqueceste-te de lhe dar corda… está-se
mesmo a ver que ia parar a meio da noite. Que horas são no teu relógio?»
Silêncio.
«Deixa estar que eu acerto pelo meu… Isto só eu! Tudo
eu…»
«Vem…»
Ela
tinha-o abraçado por trás e falou-lhe num sussurro, libertando-o logo em
seguida.
«Só mais um mergulho…» Pediu.
Plantada,
dois passos à sua frente, sorriu e estendeu-lhe o braço num apelo mudo. Ele
sorriu e soprou-lhe um beijo, mas manteve-se imóvel. Maria invetivou-o.
«Só mais um, Paulo. A água está fantástica! É verdade
amor, não imaginas como a água está fantástica. É que está mesmo fantástica.
Fantástica, fantástica, fantástica.»
Toda
ela emanava uma alegria pueril, uma alegria que lhe iluminava o corpo. A
neblina ajustava-se à cintura dela, sem a prender, qual roda de saia, num
bailado popular. Bem ao contrário: deixava a sua pele sedosa livre de
movimentos, para flutuar sobre a alvura, libertando vapores do corpo morno, que
a engrossavam.
«Já está frio. Sair da água vai ser um arrepio que só.
Anda, vamos vestir-nos.» Disse ele.
Caminhavam
de mãos dadas e o mar acompanhava-os: Longe da vista, mas perto dos ouvidos. O
manto branco da névoa densificava-se e a memória do mar sobrevivia nas gotas
que desciam pelo corpo dela com sensualidade. Era um eco abafado trazido pelas
ondas, que morriam cedo demais, ou por uma vaga mais forte que se arrojava pela
areia, deixando a sua marca e beijando-lhes os pés com uma réstia de espuma.
Era isso o mar, aquele oceano imenso. Tão imenso e ensurdecedor como o
silêncio.
Paulo
apertou, com ternura, a mão da companheira. Ela envolveu-o com o olhar. Estava
tudo dito.
Segurou-lhe a outra mão e olharam-se enlevados. Um ósculo
invisível viajou entre eles e o musical desenrolar das ondas eternizou o
momento.
«Vamos?»
«Vamos.» Respondeu ela.
Correram praia fora, aumentando o espaço entre eles e o
mar. Com agilidade saltaram pequenos charcos ou evitaram as alforrecas, lavadas
pelas ondas, até os corpos se abandonarem ao cansaço, estendidos na areia.
«Quim…?
«O que foi agora?»
«Desculpa, mas essa luz… Vira o candeeiro mais para ti.
Isto está a dar cabo de mim. Estou a ver que tenho de reforçar a dose, só um
comprimido já não é suficiente!»
«Devias experimentar cansar a mente com algo útil. Olha
lê um pouco.»
«Não vale de nada homem! Tenho a impressão que estes
comprimidos já não fazem efeito. Tenho é de arranjar algo mais forte, uma droga
mais eficaz… é isso, tenho é de mudar de droga.»
Lisa
ajeitou o travesseiro e aconchegou o lençol, virando-se. Quim, absorto no
livro, tinha partido.
«Está tão gostoso!»
Ele anuiu com um sorriso.
«É que está mesmo gostoso, não está Paulo?» Disse ela,
tocando-lhe carinhosamente o braço.
«Está ótimo! Está um fim de tarde fantástico.» Respondeu
Paulo.
Maria
fechou-se num novelo, abraçando as pernas. Sentada na areia, deixou que o
marulhar a embalasse. Os olhos, com um brilho em crescendo, fitavam o infinito,
que se estendia para lá da alvura. Era ela e o mar, aquele mar
imenso…Despertou.
«Está mesmo tão gostoso…» Repetia.
«Está ótimo, mas temos de ir.» Disse Paulo, com ternura.
Com o cair da noite o mistério esfumou-se: a névoa
desfez-se pouco a pouco. Fixou-se sobre o mar tapando-o como um manto branco. A
barreira visual, mas transponível pelo corpo, criou dois mundos. De um lado, o
mar envolto na bruma, do outro, as dunas e o verde dos pinhais, que surgia,
agora, como uma surpresa apenas desvendada à última hora. Uma réstia de luz
espalhava uma melancolia pálida sobre a costa, que estática se oferecia com
humildade. Paulo colocou-se de pé, ainda a tempo de ver, ao longe, a janela do
restaurante iluminar-se.
«O dono do restaurante já deve estar à nossa espera –
disse ele – Como está esse apetite?»
«E o teu como está?»
«Tenho uma fome de leão!»
Paulo
esfregou o abdómen para ilustrar as palavras, com um sorriso estampado no
rosto.
«Então eu também tenho fome. Um apetite de leoa!»
«Como é isso?»
Ela
aproximou-se dele e abraçou-lhe a cintura.
«Hoje a sintonia contigo é quase mística.»
Ele
arregalou os olhos de surpresa.
«É verdade. Sinto o que tu sentes. Palavra!»
Um
silêncio cúmplice acolheu-os no seu seio.
«Isto vai de mal a pior. Qualquer dia já não existem
comprimidos que me façam efeito, se é que esta droga faz algum!
«Imagino… Essa mania de emagrecer à força!»
Lisa
deu mais uma volta na cama em busca de um conforto que lhe escapava.
«Não homem! O emagrecer
não tem nada que ver com este assunto. O sono foge-me por outras razões. Olha
se tivesse verdadeira companhia, alguém com quem desabafar, em vez de andar por
aí a moer arrelias com os meus botões, talvez o sono viesse. Pois, é como se
não fosse nada contigo: vira-me as costas. Nem sabes a inveja que me fazes!»
«Pois sim…»
«É verdade, fazes-me
inveja, uma inveja danada! Nada te atinge. Para ti não existem complicações.
Viras as costas aos problemas e ficas como se não fosse nada. Literalmente
nada! Invejo-te. Invejo-te tanto que nem fazes ideia. Acreditas?»
«Que remédio tenho eu,
senão acreditar…»
«Que remédio? Ainda por
cima diz, que remédio… É incrível! Até parece que eu invento problemas para te
martirizar. E eu, como é que fico? Qual é o meu remédio? Envelhecer sozinha e
de forma estúpida. Pois, ou talvez eu já não tenha remédio, a não ser tomar
mais remédio…»
Lisa deu mais uma volta na cama e tapou o rosto num gesto
para prender o sono, enquanto Quim se entregava devotamente ao livro.
Ela adiantou-se alguns passos e desafiou-o com o olhar.
Paulo lançou-se no seu encalço e abraçaram-se entre gargalhadas. Estavam
felizes! A areia tinha ficado seca e solta e a progressão tornou-se mais lenta.
O fresco da noite tocou-lhes os corpos. Sentiram o seu abraço à medida que a
escuridão se instalava à sua volta. Tinham conquistado as dunas. As piteiras,
que antes pareciam raquíticas, exibiam ramos gordos e espalmados. Eram mãos a
acenar que saudariam não estivessem cobertas de espinhos. Os chorões
tornaram-se manchas irregulares, dispersas pelas dunas, que escureciam o
reflexo da areia na noite. O restaurante era um marco no topo das dunas, que
brilhava na escuridão, exibindo o seu ar decrépito: corroído pelo tempo e pela
humidade. O mesmo vento que tinha coberto o passadiço de areia, tinha tombado
as cadeiras de vime, enterrando-as, como se as quisesse ver verdejar.
«Entra.» Disse ele,
segurando-lhe a porta.
As velas faziam brilhar os antúrios vermelhos que enfeitavam
a mesa. Era a flor preferida dela. Pela vidraça, olharam a praia e o mar.
Estava tão manso que quase não se ouvia.
«O mar nunca chega ao
meu castelo - Dissera o dono – Na altura das marés vivas lança-se contra as
dunas bramindo, num ato de bravura incontestável. Mas aqui ele não tem
autorização de chegar!»
«É tão tarde! Já não vou
dormir as minhas oito horas. O pior é que não sei como me vou levantar de
manhã… Escuta!»
«O que foi?»
«Não estás a ouvir
barulhos?»
«Barulhos?»
«Juro que ouvi ruídos na
sala. Parecia que andava ali alguém a mexer nas nossas coisas! Muitas vezes,
quando não consigo dormir, apanho cada susto! Eu devia fazer como a Nanda:
noite em que não consegue dormir, veste-se e vai passear com o marido. Mas eu
não consigo. Não tenho coragem de te acordar, mas são muitas as coisas para as
quais não tenho coragem. A verdade é que eles são como bainha e espada. Já nós…
Bom, isto apesar de tu a classificares como uma tipa. Bem sei que para ti as minhas amigas são apenas de duas
estirpes: tipas ou galinhas. Às vezes interrogo-me em qual
delas tu me incluis.
Quim colocou cuidadosamente o marcador no livro e
fechou-o. Apagou a luz e virou-lhe as costas. Fez-se silêncio na noite.
«O meu anel!» Gritou
Lisa.
Eles estavam debruçados sobre o muro, por cima do
calçadão. O anel caiu, caprichosamente, ao lado de um casal, no momento em que
ele colocava um anel de brilhantes no dedo dela.
«Eu sou o Paulo e esta é
a Luísa. Aqui tem o seu anel.»
O anel tinha perdido a cobertura dourada, de fraca
qualidade. Era apenas latão!
«Obrigado» Disse Lisa,
colocando-o no dedo.
Partiram
«Esse anel está nojento!
Tens de deixar de o usar.»
«Quando me ofereceres um
igual ao que o Paulo deu à Luísa…»
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