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A VER AS ESTRELAS

A VER AS ESTRELAS

 A vida tinha sido amarga. A felicidade apenas lhe tinha batido à porta por um período muito curto, acariciando-o, intensamente, para o abandonar brutalmente. O falecimento repentino da mulher, dois anos depois do ter casado, tinha-o deixado destroçado. Ficou sem chão e sem norte. Após seis meses de muito sofrimento e bastante ajuda começou a ver uma luz ao fundo do túnel. A noção de que queria continuar com a vida, substituiu o conselho de que tinha de continuar com ela. Esse foi o ponto de viragem.  Tinham decorrido dois anos desde o acontecimento fatídico e ele continuava sem vontade de encontrar um novo amor. Em termos afetivos ele era uma autêntica ilha. Como amigo, Alberto era o companheiro ideal, mas se as mulheres tentavam ultrapassar essa barreira ele fechava-se na sua concha, afastando-as com a sua reserva. O grupo da neve não lhe deu alternativa: Tinha que os acompanhar na semana de férias, em Baqueira, pelo Carnaval.
Apesar dos esforços do grupo, não tinham conseguido ficar todos no mesmo hotel. Na verdade, Alberto não tinha conseguido ficar em nenhum hotel. Os quartos individuais estavam esgotados e acabou por ficar num apartamento. Ao quarto dia de ski o tempo melhorou e o sol deu o ar da sua graça. A passagem pelo Montarto, ao fim do dia, foi requerida por questões administrativas. O anúncio, colocado logo à entrada, chamou-lhe à atenção: no dia seguinte havia um passeio de raquetes, com o objetivo de apreciarem as estrelas. Sem pensar duas vezes, ainda que sem perceber muito bem o porquê, inscreveu-se. Quando desceram a última pista, Alberto anunciou aos amigos que tinha uma atividade, entre as seis e as oito. Os que quiseram participar viram-se impedidos pelo limite de inscrições.
O grupo era constituído por doze pessoas, orientados por um guia, que escolhia o caminho e ia explicando a envolvente. O percurso de ida era feito a uma altitude mais baixa que o regresso, altura em que as estrelas estariam visíveis. A maioria eram espanhóis, mas existiam dois franceses e dois portugueses: Alberto e Laura. O ar convencido dela fez surgir nos lábios de Pedro um sorriso discreto. O facto dela ter tido alguma dificuldade em apertar as raquetes deixou-a atrapalhada e a forma despretensiosa como Alberto se ajoelhou a seus pés, para lhas apertar, deixou-lhe o rosto ruborizado. A raquete do pé esquerdo tinha um problema qualquer que dificultava a tarefa. A intervenção do guia resolveu o problema, deixando-a tranquila. Laura ficou no último terço do grupo e Alberto ficou dois lugares atrás, ocupando a última posição.
Laura estava entusiasmada com a proximidade das férias. As constantes viagens entre Portugal e os Estados Unidos, na sequência de um doutoramento em biotecnologia molecular, tinham-lhe consumido o tempo e as energias. A primeira recompensa tinha sido a aprovação, com distinção e a segunda tinha sido uma pausa de um mês. A semana de férias na neve representava um regresso, após três anos de interrupção. A semana de ski estava a ser muito boa, apesar do mau tempo, pois a qualidade da neve era excecional. Ela conduziu os filhos dos amigos por alguns “fora de pista” e eles adoraram. Eram jovens adolescentes e dava-lhes mais gozo esquiar desviando-se das árvores do que em espaços abertos. Laura deu-lhes a oportunidade que de outra forma não teriam, pois os pais não o autorizavam: não confiavam nos filhos, mas tinham confiança no bom senso e no nível de ski dela. Ao fim do dia, enquanto os amigos tinham de tomar conta dos filhos, ela estava livre para passear ou para outras atividades. A opção pelo passeio de raquetes tinha-lhe parecido uma boa ideia, que tinha começado mal. Quando aquele homem se ajoelhou a seus pés ela teve vontade de o mandar afastar-se, mas conteve-se: estava toda a gente a olhar para ela. Quando ele se levantou, reparou no seu porte atlético. Era um homem elegante e musculado, mas o sorriso condescendente que lhe aflorou os lábios, teve o condão de a irritar. «Tinha que ser um homem tão interessante!» Pensou. Quando ele a ignorou, Laura afastou-se, empinando o nariz arrebitado. Estranhamente isso tornava-a ainda mais bonita. Foi exatamente esse o pensamento que se atravessou na mente de Alberto.
A neve estava muito solta e, apesar das raquetes, os pés penetravam nesta uns bons dez centímetros. Isso tornava a caminhada lenta e até algo penosa, sobretudo após um dia de ski. Estava frio, mas o esforço da caminhada mantinha os corpos quentes. Demasiado quentes, para o gosto de Alberto. Anoiteceu rapidamente pelo que receberam instruções para ligar as lanternas que estavam acopladas aos capacetes. Ao início, a luz do entardecer incidia sobre as arvores, pintadas de branco e sobre algumas nesgas de chão, espalhando uma claridade nostálgica pela paisagem. Quando o véu escuro da noite os envolveu, apenas a luz das lanternas alumiava o caminho. Caminhavam por baixo dos pinheiros frondosos, que estendiam os ramos sobre o caminho, onde a luminosidade assumia um tom lobregue. O reflexo desta no manto de neve, que cobria o chão, espalhava-se por todo o lado, mas como estavam por baixo dos pinheiros, os troncos cinzentos e os ramos verdes absorviam-na, criando uma dicotomia desconcertante: por baixo, a claridade intensa da neve branca e, por cima, o tom escuro das árvores cujos ramos os cobriam, escondendo o céu.  A noite estava escura como breu. De quando em vez, uma ave levantava voo, à passagem deles, assustando-os. Caminharam no sentido ascendente, sempre pelo meio das árvores, até que estas desapareceram sem aviso. Nada os tinha preparado para o choque de luz que os rodeou. Os focos dos capacetes projetavam-se nas várias direções, criando a sensação de um espetáculo de luzes, ampliado pelo reflexo da neve e estendendo-se por dezenas de metros. Depois de absorvido o impacto, provocado pelo desaparecimento da sombra dos pinheiros, o guia começou a falar sobre as estrelas. Tinham parado e ele mandou desligar as luzes. A escuridão envolveu-os e a sensação de frio levou-os a verificar os agasalhos. Levantaram a cabeça e admiraram o espetáculo de ver as estrelas. Para Laura, uma menina da cidade, foi um momento mágico. As estrelas pareciam tão perto que tentou alcançá-las com as mãos. Estava tão absorvida que exclamou:
«Meu Deus! O universo é mesmo grandioso...»
Alberto foi o único que percebeu o que ela disse e sorriu. Ele tinha experimentado aquela mesma sensação quando era criança, tal como todas as crianças da aldeia. Como era um curioso sobre o universo, o pai tinha-lhe permitido ampliar a curiosidade com um telescópio. O coelho saiu disparado do meio das árvores e saltou para o lado quando deu de frente com aquele grupo de intrusos. Quase todos se assustaram, mas Laura entrou em pânico. De forma instintiva saltou para o lado, soltando um grito estridente.  A raquete do pé esquerdo embateu numa pedra e o fecho abriu-se. Despojada da proteção da raquete a perna enterrou-se até ao joelho. Alberto foi em seu auxílio, mas o mal já estava feito: ficou com uma entorse que lhe dificultava a caminhada. Apesar dos protestos, Alberto carregou-a ao colo, durante alguns metros, até que o socorro chegou, sob a forma de uma mota de neve, que os levou aos dois. Alberto ficou com ela, no posto médico, até à chegada dos amigos. Felizmente não era nada de grave, mas ela ia ficar impedida de usufruir do prazer do ski no último dia da semana.
Os amigos de Laura adoraram Alberto e durante toda a noite divertiram-se à custa dela, romanceando o encontro dos dois. A verdade é que no dia seguinte Alberto veio ter com ela e levou-a a almoçar ao Unhola, um restaurante em Baguergue, tendo passado a tarde juntos. Sentiam-se bem um ao lado do outro. Pela primeira vez, nos últimos anos, Alberto estava animado. O seu apurado sentido de humor tinha voltado e ela divertia-se imenso com as suas graças. O elo que os unia era algo de especial, embora nenhum deles se preocupasse em qualificá-lo. Por graça, decidiram juntar os dois grupos ao jantar, o que se revelou uma excelente ideia. Foram ao Casa Rosas, também em Baguergue e no fim da refeição já existiam planos para fazerem ski todos juntos, no ano seguinte, numa estância dos Alpes a definir.
«Aqueles dois ainda não perceberam, mas estão enamorados um do outro.». Disse um amigo do Alberto, em diálogo com uma das amigas de Laura.
«Também acho.» Concordou ela.
Alberto acompanhou a convalescença de Laura de tão perto, que ela entrou na sua vida e ele no coração dela. Apaixonaram-se a ver as estrelas. O ano que se seguiu foi maravilhoso. Laura viveu a sua primeira grande paixão de uma forma tão intensa, que amiúde se interrogava como tinha conseguido viver, sem aquele amor, durante tantos anos. Para Alberto foi tempo de cura. A paixão que tomou conta dele sarou a ferida deixada pelo amor anterior, mas nem sempre uma paixão que cura, dá lugar a um amor que dura. Ao fim de um ano a relação chegou ao fim, deixando marcas distintas em cada um deles. O amor é como uma tempestade que devasta uma seara de trigo. Quando termina deixa-a de rastos, mas quando esta passa e o sol brilha, os pés de trigo levantam-se e a seara volta a deixar-se acariciar pelo vento, emprestando a sua beleza ao campo. Laura sentiu a tempestade arrancá-la pelos pés. Sem forças para resistir a tanta dor, deixou que esta a arrastasse para o sofá, onde derramou toda a mágoa em rios de lágrimas. Depois a vida continuou. Apesar da separação ficaram amigos e há até quem vaticine que estão destinados um para o outro.


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