O MEU QUARTO É O MEU REINO
A
vida tinha-se tornado muito complicada. A paixão pelos jogos online e pelo
desporto competia a par e passo com a necessidade de estudar. O curso de
engenharia não era a prioridade, mas os pais incentivavam-no, de todas as
formas que podiam e ele lá ia progredindo. A paixão pelas aulas práticas era
autêntica, mas as teóricas eram uma seca. Nenhum professor o satisfazia: a
ignorância é normalmente mais exigente que a sapiência! Passava em casa uma boa
parte do tempo, mas isso não o incomodava. Saía para ir às aulas práticas e para
os três treinos semanais: o rugby era a sua paixão. Isso fazia com que não se
sentisse preso.
O
encerramento das escolas deixou-o preocupado. Primeiro pelo motivo, depois
porque o pai e a irmã passaram a estar em casa o dia todo. O governo tinha
tomado as primeiras medidas para inverter a subida exponencial do número dos
infetados pelo COVID–19. A universidade daria as aulas recorrendo a meios telemáticos.
Pelo menos nos cursos de engenharia funcionaria assim. O pai, diretor de um
banco, foi colocado em teletrabalho. Como a mãe era médica continuou a ir todos
os dias para o hospital e para o consultório. A especialidade de medicina
interna, afastava-a do centro do furacão, mas não afastava o risco, na
totalidade. Foi nessa altura que a vida se começou a complicar. Felizmente
tinham empregada. O pai tinha de trabalhar, por isso estabeleceu um horário
para a filha, de oito anos e outro para o jovem Filipe. Ele tinha que assistir
às aulas, mas tinha também que brincar com a irmã nos dois intervalos da manhã.
O pai, fechado no escritório, não podia ser interrompido entre as oito e as
treze horas. Durante a tarde o pai era quem acompanhava a filha nos intervalos
e brincava com ela, a partir das cinco da tarde. Ana era uma jovem exuberante
que adorava o irmão, isso significava que não o deixava em paz, a partir do
momento em que ficava livre das tarefas diárias. Era nessa altura que Filipe
fechava a porta e dizia:
«O meu quarto é o meu reino!»
Ana
necessitava de gastar as energias, próprias de uma jovem da sua idade. A mãe
chegava tarde e cansada, todos os dias, pois começou a ser sucessivamente
requisitada para dar apoio, na retaguarda, no tratamento dos doentes da COVID-19. O pai, para
além de fazer o jantar era o artífice dos jogos e brincadeiras com a filha. Ao
fim de alguns dias já estavam todos um pouco desgastados. Felizmente, o
fim-de-semana estava à porta. A má notícia é que com o fim-de-semana veio
também o estado de emergência. A mãe foi definitivamente alocada ao tratamento
de doentes da COVID-19. Nessa altura tiveram de tomar a primeira decisão
dolorosa: separar a família. A mãe foi viver com uma sobrinha, também ela
médica e alocada ao COVID-19. Apesar da diferença de idade, uma tinha cinquenta
e quatro, a outra trinta e dois, tinham uma relação fantástica.
A
semana seguinte foi um pesadelo. Com a mãe longe de casa e a correr riscos
sérios de contaminação e sem empregada, tiveram que fazer uma divisão das
tarefas diárias. Depois de grande discussão estabeleceram um conjunto de regras
básicas. Filipe ficava encarregado de fazer o almoço, colocar e retirar a mesa,
colocar e retirar a loiça na máquina e levar o lixo. O pai ia às compras, fazia
o jantar, limpava a casa e tratava da roupa. Ana ajudava o irmão e o pai,
naquilo que podia. A pandemia tinha tomado conta da vida deles e da de todos os
portugueses. Para evitar trazer o vírus para casa, tinham arranjado um espaço,
no hall de entrada, onde estenderam uma toalha, em cima da qual eram colocados
os sapatos com que iam à rua. Quando chegavam, descalçavam-se, de imediato, limpavam os sapatos, com um toalhete e desinfetavam as mãos. Apesar do
abrandamento da economia, o pai era o financeiro e tinha a seu cargo o encerramento
de contas de mais de seis dezenas de empresas, estando o processo no seu auge.
Depois de deitar a filha ainda ia trabalhar mais umas horas, mas os sessenta anos
pesavam-lhe demasiado. Fazia quinze dias que André estava em casa e parecia-lhe
que tinha passado um ano. Tinha saudades da esposa, sentia a falta da empregada
e tinha falta de paciência para os filhos. Filipe até colaborava, cumprindo as
tarefas, mas refilava cada vez mais. Ana estava insuportável. Ter uma criança
de oito anos, fechada em casa, era muito complicado, mas quando se tratava de
uma jovem que adorava praticar desportos de rua, era dramático. Acrescia a tudo
isto o stress do trabalho, do risco que a esposa corria e do risco da economia
desabar. Ainda tinha na memória o resultado da última crise e as dificuldades
porque tinha passado.
A
televisão não era uma opção. As notícias sobrepunham-se a tudo e as desgraças
sucediam-se umas às outras. Primeiro foi a Itália depois a Espanha, logo
seguida da França, da Inglaterra e dos Estados Unidos onde a doença assumiu
proporções superiores às da Itália. A medicina avançava devagar e a única
solução para reduzir o contágio e as mortes, parecia ser identificar o mais
rápido possível os infetados e interromper a cadeia de infeção. A palavra de
ordem era: Testar! Felizmente, os países conseguiram manter os serviços
básicos a funcionar e os bens alimentares não faltaram, independentemente dos tristes
episódios de açambarcamento, verificados no início do processo infecioso.
Tinha
decorrido um pouco mais de um mês desde que André estava em teletrabalho e
depois de um período em que todos pareciam estar saturados da situação, as
rotinas impuseram-se e a vida continuou. «A vida continua sempre, para aqueles
que vivem, naturalmente.» Dissera-lhe o pai ao telefone. Aquilo que lhe custava
mais era o distanciamento da esposa. Sofria mais do que mostrava, sobretudo
durante a noite. Por vezes sonhava que ela não voltava, embora o motivo não
fosse claro. Nessas alturas, acordava sobressaltado e já não voltava a dormir.
Tinha envelhecido mais nessas cinco semanas do que no último ano.
No
dia dezanove de Abril, um domingo, ficou impressionado com o aspeto da esposa.
«Querida estás com péssimo aspeto.» Disse ele,
de forma carinhosa, quando a imagem dela apareceu no Skype.
«Estou muito cansada. Os turnos, para além de
terem doze horas, são muito esgotantes. Cada dia tenho mais colegas infetados.»
«Tem cuidado meu amor.»
«Olha, tenho os mesmos cuidados que todos os
colegas, mas este vírus é muito furtivo.»
André
ficou preocupado. Carla arfava e estava com o rosto muito inchado.
«É da sinusite.» Disse ela.
André anuiu, mas no seu íntimo discordou. A
esposa foi descansar, enquanto a sobrinha saía para fazer o turno da noite.
André dormiu bem e acordou descansado. Depois de tomarem o pequeno-almoço cada
um dedicou-se às suas tarefas. Ele tinha uma reunião geral com duas horas de
duração. Ligou-se à Webex meetings e colocou os auscultadores. Passados poucos
minutos, o telefone começou a tocar mas ele ignorou-o. Carla apenas se
levantava às dez, por isso não era ela. O telefone não se calava. Chegou a
cadeira para trás e estendeu o braço para o sofá. Era a sobrinha. O coração
saltou-lhe no peito. Retirou os auscultadores com violência e atendeu.
«Tio! A tia Carla não está bem.»
«O que se passa. Conta-me tudo.» Disse com
aflição.
«Ela está a arder em febre e com dificuldade
de respirar. Vou levá-la para o hospital. É possível que esteja com o
COVID-19.»
André
perdeu o chão. Não era justo! Ela tinha feito tanto sacrifício para cuidar dos
infetados e a paga que recebia era uma infeção. Deu um murro violento na
secretária, seguido de um berro e a emoção tomou conta dele. O filho assustou-se com o estrondo e
veio ter com o pai. O olhar dele dizia tudo. Abraçaram-se e choraram no ombro
um do outro.
«A tua mãe é forte e jovem. Ela vai
recuperar. Não podemos assustar a Ana.» Disse o pai.
Limparam
as lágrimas e separaram-se. Carla foi diretamente para os cuidados intensivos,
não conseguia respirar sozinha. O diretor clínico do hospital, que era
conhecido da família, foi quem lhe deu a notícia. O teste foi positivo, mas o
mais grave era que apresentava também sinais de diabetes e a sinusite estava ao
rubro. Aparentemente, o estado de infeção era elevado e já tinha tomado conta
dos pulmões. Tinha uma pneumonia gravíssima. Ana quando soube que a mãe estava
doente não conseguia parar de chorar. Ela tinha visto as notícias sobre os
vários países e sobre Portugal, ao lado do pai. Ainda que quisesse imaginar a
mãe de saúde, apenas lhe vinham à memória as imagens dos doentes, espalhados
pelo hospital, sem condições, a morrer aos poucos. O médico tinha dito que
estavam a fazer todos os possíveis para curar Carla. André agarrava-se a essa
informação com todas as forças. Era essa esperança que lhe dava força. Durante
três dias viveram angustiados pela realidade: O estado de Carla piorava cada
dia que passava. Quando recebeu a notícia caiu, literalmente, para o lado.
«Filipe!» Gritou a Ana que estava ao lado do
pai quando este recebeu o telefonema.
O
filho arrastou o pai para o sofá e este acordou com um grito.
«Não!»
Filipe
entendeu de imediato o que se tinha passado e a irmã agarrou-se às pernas do
pai assustada, ao ver a sua aflição. Estavam os três banhados em lágrimas.
André sofria profundamente com a morte da esposa, mas nunca pensou sofrer ainda
mais com a dor dos filhos. Mas apesar disso, não tinha forças para os consolar.
Choraram durante muito tempo, os três abraçados, no sofá da sala. O mundo
parecia ter parado e todas as notícias sobre aquele vírus maldito, todas as
imagens da desgraça que a televisão transmitia, pareciam um filme. Até a
própria morte de Carla lhe parecia irreal. Quando conseguiu secar as lágrimas ou
quando a sua fonte se esgotou, endireitou-se e falou com os filhos. A vida
tinha de continuar, não por ele, mas por aquele anjo de oito anos que se agrava
a ele como uma náufraga. Sim a vida tinha de continuar! A vida sempre tem de
continuar para aqueles que sobrevivem.
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