A MATRÍCULA
Decorria o mês de
Abril de 1982. Sentado nas escadas de acesso aos serviços sociais, na rua
Andrade Corvo, em Lisboa, ele esperava. Os jovens, de ambos os sexos, que
passavam por ele evitavam-no desviando-se com aparente incómodo. Isso não
abalava a sua convicção. Tinha de sair dali com uma bolsa de estudos. Por
alguns instantes desligou-se daquela realidade e recordou o percurso que o
levara até ali.
O ano letivo
tinha chegado ao fim e tinha concluído o mesmo com sucesso. Podia entrar na
faculdade que quisesse num curso à sua escolha, mas acabou por não se
candidatar. O pai tinha sido muito claro: eu não tenho dinheiro para te pagar
os estudos. Dois dos irmãos já tinham saído de casa, mas os restantes seis viviam
do parco salário do pai, pois a mãe era doméstica. Todos ajudavam trabalhando na
pequena propriedade que lhes proporcionava um complemento fundamental para a
sobrevivência da família. Viver da agricultura era duro e ingrato, mas ter de
trabalhar duramente sempre que não tinha aulas era muito mais ingrato. Era
duplamente exigente: esgotava-lhe o físico e exigia esforço do intelecto!
Depois de muito
pensar sobre o assunto e de se informar junto dos amigos que tinham entrado
para a faculdade, na primeira fase de candidaturas, ele decidiu candidatar-se à
segunda. A opção era ir para o Porto pois podia aproveitar o apoio de um dos
irmãos que aí vivia. O ISCTE era um dos institutos bem recomendado, que
aparecia nas listas da universidade do Porto. Preencheu o boletim colocando-o
em primeiro lugar. Quando saíram os resultados, aquilo que era óbvio materializou-se
num facto: tinha sido admitido no curso de Organização e Gestão de Empresas.
O pai, embora
admirando a sua tenacidade, foi perentório na recusa em financiar os estudos.
Apesar disso, ele pediu dinheiro para se matricular, no pressuposto que
arranjaria forma de se sustentar no Porto. Acompanhado pelo irmão percorreram
todas as faculdades que este conhecia. O ISCTE não era nenhuma delas. Fartos de
andar de um lado para o outro, foram ao centro de candidaturas onde tomaram
consciência de uma realidade dura: O ISCTE era em Lisboa. As matrículas
terminavam no dia seguinte pelo que viajou nessa noite, no autocarro da uma da
manhã, com o objetivo de se matricular no dia seguinte. Foi aí que começaram as
dificuldades. A matrícula implicava o pagamento de uma propina ou a indicação
de que tinha requerido a isenção da mesma, nos serviços sociais. A chefe da
secretaria aceitou que, a título excecional, ele entregasse o comprovativo desse
requerimento até às dezoito e trinta. Os serviços sociais apenas atendiam os
candidatos com marcação prévia. Essa era a razão porque se encontrava sentado
nas escadas.
«Tenho que entregar o comprovativo de requerimento de isenção de
propinas hoje, senão a matrícula fica sem efeito.»
«Lamento, mas hoje não vamos poder atendê-lo.» Foi a resposta lacónica
da assistente social.
«Ficarei aqui até ser atendido.»
«Lamento mas na sala só podem ficar os alunos com marcação.»
«Não tem problema. Eu espero na escada.»
Os serviços
fechavam às dezasseis horas mas estavam abertos durante a hora do almoço. Os
empregados, quando foram almoçar, brindaram-no com os mais diversos olhares e
alguns comentários em surdina. Ele não os ouvia mas podia perceber que lhe
censuravam a atitude. Por volta das catorze horas chegaram as duas amigas.
Artur não conseguiu tirar os olhos da morena. Ela percebeu a admiração e ao
invés de desviar o olhar sorriu-lhe com simpatia, cumprimentando-o. Ele não
queria acreditar. Tratava-se de uma jovem de rara beleza com um sorriso
encantador e uma silhueta perfeita. Quando voltou a ficar sozinho sorriu.
Ria-se de si próprio. Um pobretana, prestes a ser recambiado para uma aldeia,
perdida no norte de Portugal, sonhava com uma mulher daquelas. «Ela dever
ter-se ficado a rir de mim!» Pensou.
«Olá. Posso sentar-me aqui ao teu lado?»
O som da resposta
morreu-lhe na garganta. Não sabia o que dizer, nem percebia muito bem aquilo
que se estava a passar. Ficou a olhar para ela de olhos arregalados e boca
aberta. Ela riu da figura atrapalhada e sem jeito que o seu rosto refletia.
«Desculpa. Não devia estar a rir-me. Devias ver-te ao espelho.» Disse
ela em tom brincalhão.
Ele engoliu em
seco. Embora fosse algo tímido, era desenvolto e bem sucedido entre as
mulheres, mas aquela tinha-o apanhado de surpresa. «Meu Deus que figura
triste!» Pensou. No entanto, o comentário dela teve o condão de o acordar
daquele transe.
«Imagino… Mas perante uma beleza e elegância como a tua é normal que um
homem fique esbabacado!»
Ela ficou séria.
Tinha gostado da presença de espírito dele e do sentido de humor.
«Sei que não almoçaste. Toma o meu lanche.»
Ele esboçou um
gesto de recusa que ela contrariou.
«Não te preocupes que eu tenho outro.»
Aceitou. Estava
realmente com muita fome. O pequeno-almoço tinha sido frugal e a noite que
tinha passado a viajar não ajudava muito.
«Já foste atendida?»
«Eu apenas vim com a minha amiga.»
Ela era aluna da
faculdade de direito e estava no segundo ano. Vivia no Restelo, embora isso
para ele não tivesse qualquer significado, dado não conhecer Lisboa. Ele
contou-lhe a sua história e ela ouviu-o com admiração. Estiveram à conversa
durante mais uma hora, mas quando se separaram a empatia entre os dois era
grande.
«Este é o meu número de telefone.» Disse ela.
Júlia partiu
depois de ter apresentado a amiga a Artur. Ele ficou a vê-las partir e sonhou
novamente. Sonhou com o impossível. Foi chamado à realidade pelas assistentes sociais que começavam a dar por findo o dia de trabalho.
«Você ainda está aqui. Já lhe disse que só podia ser atendido com
marcação.» Disse a assistente com quem tinha falado.
Imediatamente
atrás dela vinha a chefe que parou a olhar para os dois e quis saber a sua
história. A colega resumiu-a em duas palavras. Contrariamente ao que Artur
esperava a chefe mandou a colega embora e disse ele para entrar. A História de
um jovem, pobre e inteligente, oriundo do interior falou mais falto que os
formalismos. Dona Lurdes (ele nunca esqueceu o nome dela) atendeu-o e atribuiu-lhe
a bolsa máxima, garantindo-lhe que no ano letivo seguinte lhe arranjava um
lugar na residência Alfredo Bensaúde. A sua tenacidade e persistência
tinham-lhe permitido ultrapassar mais um obstáculo.
Conseguiu alugar
um quarto, partilhado com mais três pessoas, no bairro Santos: uma casa a cair
de podre, mas cujo valor ele podia pagar. Para além disso estava a dois passos
da faculdade. Como não tinha condições em casa, passava aí os dias a estudar e
a fazer os trabalhos. A imagem de Júlia vinha-lhe frequentemente à memória, mas
quando lhe explicaram que ela vivia numa zona de milionários ele perdeu todas
as ilusões. Apesar disso, guardou o número na carteira. Tinha perdido a conta sobre
o número de vezes que tinha pegado nele sem coragem para fazer a ligação. Ele
sabia bem a forma como os ricos olhavam para o filho de um camponês pobre. Já
tinha vivido, na primeira pessoa, várias experiências desagradáveis, ainda
antes de ir para a faculdade. Mesmo no ISCTE e entre jovens estudantes, ele
sentia essa discriminação. A classe dominante, com fortuna ou posição, não se
misturava e quando alguém de fora tentava entrar, recebia um tratamento
altamente desencorajador. Devido à sua capacidade intelectual tinha sido várias
vezes convidado a conviver com eles mas o resultado tinha sido sempre o mesmo:
humilhação.
Os colegas de
grupo tinham-no convencido a ir à festa de encerramento do ano letivo do ISCTE.
Ele, pelo facto de trabalhar no bar da Associação de Estudantes, tinha direito
a entrada gratuita. O salão estava repleto e ele estava a divertir-se imenso.
Fechou os olhos e deixou-se embalar ao som da música africana. Os amigos,
dançando em roda acompanhavam-no, embora nenhum deles tivesse a sua jinga.
Quando sentiu o toque no ombro abriu os olhos e virou-se com uma expressão
interrogadora. A surpresa foi total. Júlia estava ali na sua frente
sorrindo-lhe.
«Podemos falar?»
Artur pegou-lhe
no braço e conduziu-a até ao bar que ficava fora do salão. Em momento nenhum
ela lhe perguntou porque ele não lhe havia ligado. No entanto, era visível que
estava à espera que ele o tivesse feito. Tal como da primeira vez quis saber
tudo dele e ficou feliz pelo facto da situação nos serviços sociais se ter
resolvido bem. Falaram dos dois e isso aproximou-os ainda mais. Foram dançar e
quando a música ficou mais lenta ele pegou-lhe, gentilmente, na mão e puxou-a
para si com suavidade. Ela pendurou-se no pescoço dele e os corpos colaram-se
um ao outro. O movimento suave da dança deixou-os excitados e, de forma natural,
deixaram que as mãos acariciassem o corpo do parceiro. Os lábios uniram-se num
beijo que foi interrompido pelo fim da música.
Foi uma noite
alucinante. A atração física era visível e eles manifestaram isso mesmo, com palavras
e com ações.
«Sonhei tantas vezes com este momento que ainda não acredito que o
estou a viver.» Disse ele.
«Porque não me ligaste?»
Ele explicou-lhe
e ela entendeu. Sabia bem que o que ele dizia era verdade. Isso também
acontecia na sua família. O pai era diferente mas a mãe vivia obcecada com o
nome da família. Ela era uma Roquete. Os antepassados tinham brasão! Ela tinha
casado com um homem de sucesso que era presidente de um grande grupo
empresarial mas mesmo assim achava que ele não estava ao seu nível.
Antes de
regressar a casa para as férias grandes, que se resumiriam ao mês de Agosto,
Artur foi convidado para ir passar um sábado a casa de Júlia. Ele não queria ir
mas ela insistiu tanto que acabou por aceitar. A mãe dela fez-lhe um autêntico
interrogatório e mostrou logo desagrado pelas suas origens. O irmão dela, que
era dois anos mais velho, tomou-o sob a sua proteção. Como o Artur tinha
chegado cedo foram experimentar os vários jogos. Artur era um profissional
tanto nos matraquilhos como no snooker. João ficou encantado. Para ele era tudo
simples. As pessoas valiam por aquilo que eram capazes e o amigo da irmã para
além de inteligente e culto era também bom nos jogos de mesa: Seria o seu
parceiro para essa tarde.
Quando o resto da
família chegou tentaram logo saber quem era o Artur. O pai de Júlia reuniu toda
a gente e apresentou-o.
«O Artur é filho de um grande amigo meu do Norte.»
Não deu mais
explicações mas a forma como disse aquilo deixava implícito que pertencia ao
meio deles. No entanto, o jeito e a forma como se vestia denunciavam as suas
origens. As raparigas começaram logo a congeminar como haviam de o expor. Ao
almoço tentaram colocá-lo em cheque, quando lhe deram a honra de ser ele a
iniciar a refeição.
«A minha educação não me permite iniciar uma refeição sem a dona da
casa o fazer primeiro.»
Ficaram todos
calados. Eles queriam ver se ele sabia em que talher devia pegar primeiro e ele
colocou-os em sentido. A dona da casa estava longe dele e apesar de não ver os
talheres que ela usava escolheu o certo, com grande descontração. Júlia
piscou-lhe o olho feliz. Ele podia não ser rico mas tinha a educação de um
nobre. O resto dos convivas aprovaram o comportamento ainda que contrariados.
Durante a tarde
ele e o João derrotaram todos os que jogaram contra eles. Ao fim do dia tirando
alguns maus perdedores, que ainda o hostilizavam, a maioria das pessoas interagia
com se ele pertencesse ao meio. Até a mãe de Júlia estava rendida depois dele
ter sido parceiro dela no gamão e terem ganho o torneio.
Artur regressou a
casa de alma cheia. Infelizmente a felicidade não durou muito. O pai de Júlia
faleceu num acidente em Agosto e quando ele regressou a Lisboa, em Setembro,
Júlia estava proibida de o ver. Viram-se às escondidas até que a mãe dela
descobriu. Quando isso aconteceu Júlia foi enviada para os Estados Unidos, para
a casa de um irmão dela e não voltou a Portugal.
Quando recebeu a
primeira carta Artur ficou louco de alegria. Respondeu logo em seguida. Quando
recebeu a segunda, protestando que ele não tinha respondido, percebeu o que se
estava a passar. As cartas que ele lhe escrevia não lhe eram entregues. Ao fim
de algum tempo recebeu uma carta amarga de despedida. Artur estava desesperado.
Ainda falou com o irmão dela que lhe prometeu contactar a irmã. Foi uma
tentativa sem sucesso. Ao fim de dois anos sem notícias Artur seguiu o seu
caminho. Dizia para si próprio «O meu meio é completamente diferente. Isto
nunca iria funcionar!» Dizia-o para se convencer a si próprio e dessa forma
aliviar a dor que sentia. Infelizmente sem sucesso. Apesar de racionalmente
assumir que o amor deles estava condenado, ele ainda sonhava com ela. Isso refletia-se
na forma com lidava com novas relações.
Cinco anos depois
de ter terminado o curso ele trabalhava na Boston Consulting Group, como
consultor sénior e decidiu tirar o MBA. O resultado dos testes foi tão bom que
foi convidado a inscrever-se no MIT com uma bolsa de estudos. Na palestra de
final de curso ele escolheu falar sobre o seu caso de amor sem saber que Júlia
estava na sala. A apresentação foi emocionante!
«O que faria se soubesse que essa mulher ainda o ama?»
Artur sentou-se
na secretaria para não cair. Ao fundo da sala, de pé, estava Júlia. Era ela que
tinha feito a pergunta.
«Eu ajoelhava-me a seus pés e pediria desculpa a por não ter tido a
determinação de a seguir até ao fim do mundo. Pois se ela me ama da mesma forma
que eu a amo, só pode ser a minha alma gémea.» Disse ele, colocando um joelho
em terra.
A sala estava em
transe. O silêncio era absoluto. Artur caminhou em direção a ela e Júlia
jogou-se nos seus braços. A sala irrompeu num aplauso ensurdecedor. Eles não
perderam tempo. Apesar de terem tido outras experiências amorosas perceberam
que pertenciam um ao outro. Passado um ano estavam casados e ainda hoje, aos
sessenta anos de idade, estão juntos, sendo pais de três filhos. O verdadeiro
amor vence tudo!
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