Avançar para o conteúdo principal

O MERCADO


O MERCADO 

A sensação de viver em África é indescritível. É algo apenas ao alcance de quem a experimentou. Os cheiros, as cores e a vivacidade das pessoas são algo muito especial. É isso que torna esta aventura única.  
Decorria o ano de 1972 e Manuel tinha apenas onze anos. Sendo filho de um militar, destacado eNamboangongo, com o objectivo de dar proteção aos trabalhadores das fazendas de café, tinha sido enviado para um seminário em Silva Porto. A razão para tal nunca fora deviamente explicada pois poderia ter ficado em Luanda o que tornaria as coisas mais simples, devido à proximidade. Aparentemente resultava tudo de um facto fortuito: O comandante de companhia do pai era sobrinho do Bispo de Silva Porto. Manuel nunca compreendeu muito bem essa razão, (em Luanda também existiam seminários!), mas era uma decisão que não lhe cabia a si tomar. 
Nesse ano letivo ele tinha um colega cujos pais viviam em Luanda. Por razões que Manuel mais tarde veio a perceber ele conhecia um camionista que vivia em Silva Porto e que fazia viagens regulares para Luanda, levando produtos frutícolas e hortícolas para o Mercado Maria da Fonte. O colega devia-lhe alguns favores pois Manuel costumava dar-lhes explicações com frequência. Foi neste contexto que surgiu a ideia da viagem. Nas férias de Março, que em Angola tinham a duração de um mês, o colega convenceu-o a poupar os mil e duzentos escudos da viagem aceitando boleia desse camionista. Foi assim que começou a aventura. 
Inconsciente dos riscos e ignorante em relação ao tipo de pessoas na companhia das quais ia viajar, ele aceitou o desafio, confiando totalmente no colega. Coisas de jovens adolescentes! Às seis horas da manhã, do dia combinado, apresentaram-se os dois na casa do camionista e iniciaram a viagem. Não tardou muito para surgir a primeira surpresa. O camionista exigia que Manuel lhe pagasse quinhentos escudos pelo incómodo de o levar. Manuel tinha na sua posse mais do que essa quantia, mas resistiu: 
«Esse é o valor que tenho para comer na viagem e para o táxi e pensão, em Luanda.» Disse Manuel. 
Depois de regatearem teve de pagar trezentos e cinquenta escudos por uma boleia que era suposto ser gratuita. Manuel apesar de muito jovem estava acostumado a viver longe de casa e portanto a desenvencilhar-se, sendo bastante responsável. Ficou irritado consigo próprio. A viagem continuou sem incidentes durante algum tempo. No primeiro cruzamento surgiu a segunda surpresa: eles não iriam fazer um trajeto direto. O camionista teria de adquirir vários produtos pelo caminho, no percurso entre Silva Porto e Nova Lisboa. Para o efeito seria necessário parar em várias localidades pelo que a viagem duraria dois dias. Felizmente Manuel não tinha dito aos pais quando iria para Luanda nem como iria, essa era uma preocupação a menos. 
Aquilo que começou por ser uma contrariedade acabou por resultar numa viagem étnica que nunca mais esqueceria, mas também recheada de percalços e imprevistos. As paragens nas Chitacas, nome dado às pequenas fazendas do sul de Angola, eram uma festa. O acesso às pequenas localidades estava pejado de vendedores de estrada que lhes procuravam vender tudo o que se possa imaginar. Frutas de diversas variedades, cana de açúcar, coco, bolos, biscoitos de ginguba, enfim um pouco daquilo que produziam nos pequenos pedaços de terra que amanhavam. Eram sobretudo mulheres, cuja vestimenta colorida combinava com a alegria que espalhavam com o seu canto, carregando as crianças às costas enquanto os outros filhos corriam e saltavam em redor. Ao invés de se sentir importunado com a insistência com que tentavam vender-lhe algo, Manuel sentia-se como se lhe estivessem a dar as boas-vindas, tal era o ambiente festivo que os envolvia. Para além do canto, eram muitas vezes recebidos com alguns passos de danças tribais. Parecia que estavam numa festa! Por vezes cruzavam-se com outros camiões que levavam ajudantes na carroçaria, em cima da carga. Nessa altura os pedestre gritavam: 
«Monangambé 
A resposta, vinda de cima do camião, não tardava. 
«Eu vou de carro e tu vais a pé!» 
Era um diálogo vivo e colorido, cheio de boa disposição. 
Os armazéns das Chitacas eram muito semelhantesUm Galpão amplo, com portas de correr, onde os caixotes de frutas e legumes eram empilhados, ao lado dos sacos de batatas ou de outros tubérculos. O carregamento dos camiões era feito à custa da força braçal, no meio de uma algazarra ordenada. Os donos, sisudos, no início, aceitaram de bom grado a presença dos dois jovens. Manuel e o amigo foram recebidos nas casas dos proprietários que ficavam intrigados com a excentricidade deles ao decidirem fazer aquela viagem. Alimentaram-lhe o corpo e a alma com tanto carinho e atenção. 
A última paragem, já ao fim do dia, foi em Nova Lisboa onde acabaram por pernoitar. Tiveram de dormir dentro do camião o que não foi nada confortável. Manuel sentiu-se bastante inseguro, embora o camionista insistisse no contrário. No dia seguinte retomaram a viagem, após o pequeno almoço. O motorista acordou tarde e já passava das dez quando partiram. Isso significava que só chegariam a Luanda por volta da onze da noite. 
Manuel estava acostumado a fazer a viagem de autocarro em que a paisagem é apreciada numa perspectiva lateral. Viajar no assento da frente de um camião e a uma velocidade mais moderada, permitia-lhe ter uma perspetiva completamente distinta. Podia ver, em antecipação, a paisagem que se estendia à sua frente, partindo de uma vista panorâmica para a apreciação de pequenos detalhes. Deliciou-se com as paisagens verdes, com pastagens imensas e manadas de vacas, do Cuando-Cubango. Acompanhou o rio Cuanza, pejado de centenas de olhos flutuantes, perspetiva como os crocodilos gostavam de se anunciar. Finalmente, deliciou-se com a plantações, sem fim, de abacaxi ou de algodão. Durante vários quilómetros parecia que tinham mergulhado num mar de neve, pois, fosse qual fossem a direção em que olhavam, tudo era branco. A espaços a brancura da paisagem era interrompida por uma mancha escura em movimento: eram os apanhadores de algodão. Quando anoiteceu ainda estavam longe de Luanda. Também aqui a África surpreende o viajante europeu. A noite sucede ao dia com uma rapidez inesperada. O crepúsculo, aquele período de transição entre os dois reinos, o da luz e o das trevas, não existe. Aquele momento expectante, tão romanticamente descrito pelos escritores Europeus, em que a luz do dia se desvanece e a o escuro da noite se anuncia, foi dispensado pelo criador, nesta parte do mundo. Portanto, sem se anunciarem, as trevas caíram sobre eles. 
Entraram em Luanda por volta das vinte e duas horas e às vinte e duas e trinta estavam na praça Maria da Fonte.  
«Vou apanhar um táxi para a pensão onde o meu pai costuma ir buscar-me, porque este está na caserna militar e eu não posso pernoitar lá sem autorização previa do comandante.» Disse Manuel. 
«Não podes deixar-me aqui sozinho.» Protestou o amigo. 
«Então o que queres fazer? Onde vais dormir?» 
«Ficamos acordados a noite toda, sentados ao lado das nossa malas. Amanhã de manhã os meus pais chegam ao mercado e eu vou ter com eles.» 
«Como sabes que os teus pais vêm ao mercado amanhã?» 
Foi aí que Manuel ficou a saber que os pais do amigo tinham uma banca no mercado. Era por isso que ele conhecia o camionista, pois era fornecedor dos pais. Mais uma vez o amigo o tinha enganado. Ficar no mercado a noite toda era um perigo, mas abandonar o amigo estava fora de causa. Era o tipo de situação onde qualquer decisão era má. Uma situação a evitar. Não havia nada a fazer senão pernoitar na entrada do mercado, correndo o risco de ser roubado e molestado. 
O amigo para além de tudo era irresponsável. Primeiro decidiu ir explorar os arredores. Manuel recusou-se a acompanhá-lo pois deixar as malas abandonadas era um convite ao seu desaparecimento. Acabou por ficar sozinho com as duas malas. Enquanto esperava foram vários os grupos de negros que passaram por ele fazendo os mais variados comentários. 
«Estes acabaram de chegar do Puto e já estão a dormir na rua.» 
«Vêm atrás daquilo que é nosso a pensar numa vida fácil 
Não podiam estar mais enganados, mas as circunstâncias eram propícias aos comentários. O Puto era a designação dada pelos negros à metrópole, quando queriam dar uma conotação negativa à situaçãoDuas horas depois o amigo regressou e vinha um pouco amachucado. De acordo com a sua narrativa, tinha sido assaltado e para além de lhe levarem o pouco dinheiro que tinha, ainda o agrediram. Manuel ficou preocupado pelo amigo, mas temeu também pela sua segurança. Não tardou muito o amigo adormeceu, deitando a cabeça sobre a mala. Manuel resistiu enquanto pôde, mas depois de uma viagem de dois dias, com uma  noite muito mal dormida o sono venceu-o. Quando estava prestes a adormecer teve uma ideia: Deitou a mala, junto à parede sentou-se sobre ela, encostando-se na parede.  
Quando acordou de manhã o amigo ainda dormia. Percebeu de imediato que a mala dele tinha desaparecido. O amigo, quando se apercebeu, chorou baba e ranho. Quando finalmente conseguiu acalmá-lo foi deixá-lo junto dos pais que já estavam  a trabalhar. Eles nem queriam acreditar no que tinha acontecido. Repreenderam o filho por ter envolvido o amigo naquela aventura e Manuel foi-se embora. O dinheiro que tinha no bolso dava apenas para uma viagem de táxi. Optou por ir diretamente para o local onde o pai estava. Quando lá chegou recebeu a maior admoestação da sua vida. Surpreendentemente não lhe custou ouvir o que o pai tinha para lhe dizer. A repreensão era merecida e tinha sido devidamente antecipada. Apesar dos riscos a viagem ficou-lhe gravada na memória como um marco de aprendizagem, não apenas sobre uma cultura, mas também sobre a tomada de decisões. 

Comentários

Mensagens populares deste blogue

O SEMÁFORO

O SEMÁFORO Na cidade do Porto, numa rua íngreme, como tantas outras, daquelas que parecem não ter fim, há-de encontrar-se um cruzamento de esquinas vincadas por serigrafias azuis, abertas sobre azulejos quadrados, encimadas por beirais negros de ardósias, que alinham, em escama, até ao cume e enfeitadas de peitoris de pedra, sobre os quais cai a guilhotina. Estreita e banal, sem razões para alguém perambular, esta rua, inaudita, é possuidora de um dispositivo extraordinário, mas conhecido de muito poucos: Um semáforo a pedal, que sobreviveu, ao contrário dos “primos”, tão em voga na década de sessenta, na América Latina. No início do século XX, o jovem engenheiro, François Mercier, de génio inventivo, mudou-se para o Porto. Apesar do fracasso em França e na capital, convenceu um autarca de que dispunha de um dispositivo elétrico e económico, bem capaz de regular o trânsito dos solípedes de carga, carroças, carros de bois a caleches, dos ilustres senhores. O autarca

CARTAS DE AMOR - AMOR IMPOSSÍVEL

CARTAS DE AMOR - AMOR IMPOSSÍVEL As palavras não me ocorrem perante a imensidão do sentimento que me invade o peito. Digo-te aquilo que adivinhas pois os meus olhos e os meus gestos não o conseguem esconder. Amo-te! Amo-te desde o primeiro dia em que entrei na empresa e tu me abriste a porta. Os nossos olhares cruzaram-se e, por instantes, olhamo-nos sem pestanejar. Senti que tinha encontrado a minha alma gémea. O meu coração acelerou quando me estendeste a mão e te apresentas-te. Apenas uma semana depois soube que eras casada. Chorei a noite toda. Não conseguia aceitar que não fosses livre para poder aceitar o meu amor e retribuí-lo como eu tanto desejava. Desde esse dia vivo em conflito: amo-te e por isso quero estar a teu lado, mas não suporto estar a teu lado, sem poder manifestar-te o meu amor. Quero fugir dessa empresa, não quero mais ver-te se não te posso ter, mas não consigo suportar a ideia de não te ver todos os dias. Tu és o sol que ilumina o meu dia, mas és

O BILHETE

O BILHETE Com os cadernos debaixo do braço ele subiu a escadaria do Liceu Camilo Castelo Branco, em Vila Real. Vivia numa aldeia próxima e tinha vindo a pé. Tinha vários irmãos e como estavam todos a estudar, tinham de poupar em tudo o que era humanamente possível. Já estava com saudades das aulas! Era irónico que tal fosse possível pois os jovens preferem as férias. Não era o seu caso. Tinha vindo de Angola e, por falta de documentos, tinha ficado um ano sem estudar, trabalhando na quinta, ao lado do pai, enquanto os irmãos iam para as aulas. Estudar era, portanto, a parte fácil. Procurou a sala onde a sua turma tinha aulas: Ala este, piso zero, sala seis. Filipe era um aluno acima da média, mas a sua atitude era de grande humildade: esperava sempre encontrar alguém melhor que ele. Dado que tinha ficado um ano afastado da escola estava com alguma expectativa em relação à sua adaptação, mas confiante nas suas capacidades. Não tardou em destacar-se e no fim do primeiro tri