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A FIDALGA DA TORRE



A FIDALGA DA TORRE



Decorria o ano de 1358, quando a Fidalga veio habitar a Torre. D. Alda Vasques chegou no pico da primavera com as cerejeiras engalanadas a dar-lhe as boas vindas. A descida para a Torre era íngreme e o empedrado romano estava escorregadio, obrigando os cavalos e as mulas a uma marcha lenta. O cortejo era magnífico e os súbditos juntaram-se para os receber. Nos dias que se seguiriam era certo e sabido que seriam motivo de conversa. A fidalga e a criadagem eram uma novidade para o povo simples da aldeia de Quintela, mas o que tinha verdadeiramente despertado a curiosidade era a jovem que se sentava ao lado de D. Alda. A donzela tinha levantado o véu, que lhe protegia o rosto alvo, tornando visível a sua beleza. O corpo delgado sentia-se confortável dentro do corpete. A blusa branca de folhos, adornando um generoso decote, evidenciava os seios redondos, que espreitavam, parecendo querer libertar-se. Os jovens assobiavam baixinho, devido ao respeito, mas tinham ficado boquiabertos.
Depois de instalada, D. Alda fez saber que a capela da Torre seria aberta aos domingos para celebração da missa. Estavam todos convidados. No primeiro domingo a capela estava à pinha. Uns tinham vindo pela novidade, outros para conhecer a fidalga e a sua afilhada e outros ainda porque assim não tinham que percorrer o caminho até Vila Marim, para assistir à missa. Todos sem exceção tinham vestido o seu melhor traje, não apenas a roupa de domingo como era usual. Marcaram ainda presença alguns fidalgos das redondezas, que vieram satisfazer a curiosidade. Todos partiram impressionados com a beleza e a elegância de Beatriz, a afilhada de D. Alda. Ela tinha ofuscado tudo e todos, fazendo com que D. Alda fosse relegada para segundo plano. A fidalga, ao invés de se ofender, estava radiante, inchada de satisfação e orgulho com o desempenho da afilhada. «Está na altura de lhe arranjar um marido.» Pensou. Sendo solteira e não tendo descendência era sua intenção fazer dela herdeira dos seus bens.
D. Bártolo, um fidalgo de Panoias, tinha sido um dos homens que marcara presença na missa do domingo, acompanhado de sua esposa e, quando chegaram a casa, não se cansaram de elogiar as qualidades da jovem Beatriz.
«É uma jovem de uma beleza rara!» Dizia D. Bártolo.
«É uma simpatia. D. Alda diz que é ela que lida com os assuntos da casa. É de uma mulher assim que tu precisas.» Dizia a esposa, dirigindo-se ao filho mais velho.
Henrique entusiasmava-se pouco com a perspetiva do casamento, mas as mulheres bonitas eram a sua perdição. Talvez fosse mais apropriado dizer que ele era a perdição das mulheres bonitas. Era um conquistador imaturo e irresponsável. «Tenho de conhecer essa raridade!» Pensou. No dia seguinte, acordou cedo e depois de um bom pequeno-almoço pôs-se a caminho de Quintela, levando no alforge comida para o dia. Apesar das descrições dos progenitores, nada o tinha preparado para aquela visão. Beatriz era celestial! A jovem estava sentada num banco de pedra entre a Torre e a capela, falando com uma voz doce e melodiosa, para umas quantas crianças, que bebiam as suas palavras. Estavam tão absorvidos que, nem ela, nem as crianças se aperceberam da sua aproximação. Henrique observava a cena sem coragem de a interromper. Tinha ficado sem palavras. Quando se apercebeu da sua presença ela levantou-se e deu as boas vindas ao jovem. As pernas vacilaram. Teve de se segurar para não cair. Ele, solícito, correu em seu auxílio. O toque foi eletrizante! Ficaram os dois parados, presos no olhar um do outro. Hipnotizados! Não foram necessárias palavras. O olhar dizia que se pertenciam. Henrique tornou-se visita regular e em Agosto marcavam o casamento para Outubro. Nunca se tinha visto um noivado tão curto. D. Alda preferia assim, era tão raro um casamento por amor, que quando existia não era necessário esperar. Foi uma cerimónia memorável. As tendas instaladas à volta da Torre albergavam os convidados com pompa e circunstância. Às doze horas já eles estavam casados e os festejos duraram até às vinte e duas.
Henrique foi viver com Beatriz ocupando a parte de cima da Torre. D. Alda ocupava um dos pisos intermédios e o piso térreo funcionava como sala de refeições. A cozinha e a criadagem ocupavam os anexos. Henrique e Beatriz eram um casal perfeito. Amavam-se perdidamente e a noite de núpcias ultrapassou todas as expetativas. Na intimidade eles tinham ainda mais à vontade que no dia-a-dia. Os corpos atraiam-se, desejavam-se e entregavam-se um ao outro com desvario, mas com respeito. Descobriram que tinham uma capacidade incomum de satisfazer o outro e isso tornou-os cúmplices de um segredo. O segredo do prazer! O que se passava naquela alcova dava direito à excomunhão!
O frio chegou no fim do mês de Outubro e durou até ao fim do inverno. A chuva e a neve fustigaram os campos atrasando o avanço do seu cultivo. Finalmente chegou a primavera. O mês de Março foi muito quente a as árvores acordaram do longo período de hibernação, enfeitando-se com flores. Também os campos se cobriam de verde, logo tingido de várias cores, qual pintura de Monet. Henrique e Beatriz apreciavam o fim do dia visto das ameias da Torre. Lá no alto, o céu, de encontro ao horizonte, por cima das serras do Marão e do Alvão, pintava-se de vermelho. Visto de baixo parecia uma orla sangrenta. Era um por do sol guerreiro. A vista era de perder o fôlego. A Torre ficava numa encosta. Para cima da Torre erguia-se o casario dos súbditos, com pequenos quintais, rodeados dos pinhais que também pertenciam à fidalga. Para baixo, no sentido sul e poente, ficavam os campos agrícolas que desciam até à ribeira da Marinheira, curso de água que ia engrossar o rio Cabril. Era uma terra rica, embora se desenvolvesse em socalcos, o que tornava o seu cultivo mais trabalhoso. A alegria da chegada da primavera foi, no entanto, interrompida por um incidente desagradável e com consequências funestas. O capataz da D. Alda subiu a uma das cerejeiras, que ficava nos terrenos logo abaixo da Torre, bem perto desta e escorregou na pele traiçoeira da árvore. O embate no solo tirou-lhe instantaneamente a vida. Os filhos já eram crescidos e ultrapassaram a morte do pai sem sobressaltos, mas a mulher ficou inconsolável e consta que rogou pragas às cerejeiras. D. Alda ajudou-a da forma que pôde. Conhecia bem a mulher e nunca acreditou em pragas ou maldiçoes.
Já o mês de Maio ia avançado quando as cerejeiras começaram a atrair os melros cobrindo-se de um vermelho vivo. As primeiras cerejas estavam maduras. Os filhos do capataz eram dois jovens brincalhões que costumavam divertir-se com a história da cerejeira amaldiçoada. Certa noite, já depois da meia-noite, decidiram brincar com o assunto e subiram cada um à sua cerejeira, munidos de um lampião. Quando chegaram lá acima acenderam o lampião e começaram a comer cerejas. Apesar da ajuda do lampião era uma tarefa difícil. Quando estavam a meio da função viram que se aproximavam da Torre dois homens, que regressavam a casa já com dois grãos na asa. Como estavam longe da estada falaram entre eles sem ser ouvidos e combinaram abanar fortemente os ramos das árvores e depois começar a uivar. Os homens, que já tinham reparado nas luzes que se moviam nas cerejeiras, ficaram aterrorizados.
«Fujamos daqui que o espírito do Ti Manel anda na cerejeira e veio acompanhado!» Dizia um para o outro.
Não tiveram tempo de o fazer pois quando começaram os uivos eles desataram aos gritos.
«Acudam! Acudam! Que os espíritos vieram para nos levar!»
O barulho acabou por acordar os cachorros da aldeia que começaram a latir e a uivar. Henrique, apesar de andar meio febril e isso lhe dar sonolência, acordou também. Lá fora a noite estava fria e húmida, mas ele, ao ver as luzes na cerejeira percebeu o que se passava e foi buscar a arma. Saiu para a rua de meias e em pijama, armado de arcabuz, pondo-se aos tiros à cerejeira. Tinha chovido. As ervas altas e o chão enlameado deixaram-no completamente encharcado. Quando entrou na Torre tremia de frio e caiu para o lado. Os criados ajudaram a levá-lo para a cama, mas mesmo depois de despertar ele não parava de tremer. Beatriz esfregou-lhe o corpo com álcool, despiu-se, colou o seu corpo ao dele e tapou-se com vários cobertores e mantas. Ao fim de meia hora Henrique parou de tremer e o corpo ganhou vida. Beatriz vestiu-se e vestiu-o a ele também. Quando o dia raiou, já toda a aldeia sabia que a maldição da tia Emília tinha funcionado. Os espíritos tinham-se apossado da cerejeira e o fidalgo quis afugentá-los a tiro, mas os espíritos tomaram conta do corpo dele e estava às portas da morte. A saúde do fidalgo não era muito boa e nem os médicos que vieram de Vila Real conseguiram justificar que um resfriado provocasse tanta tosse ao ponto de encher os lenços de sangue. Beatriz era uma pessoa religiosa e por isso rezava pedindo as melhoras do marido, mas não acreditava em espíritos e bruxedos, no que era secundada pela D. Alda. As duas decidiram chamar um médico de Coimbra, pelo que foi enviado mensageiro. O homem demoraria cinco dias a chegar a Coimbra e depois tudo dependia da disponibilidade do médico. Regressou onze dias depois com a notícia de que o médico viria na semana seguinte. Beatriz tinha perdido toda a cor e a sua magreza era evidente. Fazia onze dias que não saía da cabeceira do marido, não se alimentando, nem dormindo em condições. O amor que sentia por Henrique dava-lhe força para tudo, para além disso ela estava disposta a dar a sua vida para salvar o marido, por isso não olhava a sacrifícios quando se tratava da saúde de Henrique. De nada valeram as recomendações e os ralhetes de D. Alda ou da sua ama. Ao fim de dezasseis dias Henrique levantou- se pela primeira vez e começou a caminhar pela casa, apesar de ainda estar muito frágil. Beatriz ganhou novas forças e começou a alimentar-se, mas durante a noite velava. O médico chegou dois dias depois de Henrique ter começado a andar.
«Foi um resfriado. O Senhor Fidalgo deve resguardar-se das correntes de ar.» Disse o médico, com ar de entendido.
Quando o Henrique recuperou e perante o diagnóstico do médico, o povo refreou-se e começou a pôr em causa a história da maldição das cerejeiras.
«Os Branco estavam bêbados. Se calhar não viram nada do que dizem!»
Dois dias depois Beatriz adoeceu. O médico de Coimbra, que tinha aceite a hospitalidade da fidalga, tentou de tudo para perceber o que ela tinha, mas não havia exame, remédio, mesinha ou punção, que resolvesse o problema. Começaram então a circular boatos de que Beatriz se tinha encostado, toda nua, ao marido e que os espíritos tinham passado para ela, deixando o fidalgo viver. Entretanto Beatriz piorava de dia para dia. Os sintomas eram os mesmos que tinham afligido o marido. Uma tosse profunda que lhe rebentava o peito, acompanhada de expetoração com sangue. O problema era que ela não comia. Estava enfezada e sem cor. «Cruz! Credo! A menina tem cara de morta.» Dizia a ama.
Apesar do sofrimento os olhos de Beatriz brilhavam quando Henrique estava a seu lado. Ela tinha conseguido salvá-lo e isso era tudo o que ela queria. Ainda que perdesse a vida o sacrifício tinha valido a pena. Era tal o amor que ela sentia por ele que de bom grado aceitava o sofrimento cujo fim ela já antecipava: a própria morte. Ela sentia que a terra clamava pelo seu corpo. Cada dia que passava sentia que a sua ligação a este mundo era menor. Apenas quando Henrique lhe dava a mão ela reanimava um pouco. Sem forças para fazer mais sorria-lhe e apertava suavemente a sua mão. Henrique passava uma boa parte do tempo isolado e a chorar. Sofria com a doença de Beatriz e sofria pelo facto de ela se encontrar nesse estado por sua causa. Sofria duplamente! Quantas vezes ele se ajoelhara perante a imagem de cristo crucificado, que encimava a capela e lhe pedira para levar a sua vida em vez da de Beatriz. Também ele estava disposto a dar a vida para salvar a dela. Mas o destino era incerto e traiçoeiro. Fazia as suas próprias escolhas!
Depois de uma semana em que o seu estado se tinha degradado muito, Beatriz apresentou melhorias durante dois dias consecutivos, de tal forma que, no segundo, estava com disposição para conversar. Era o fim da tarde. Ela pediu a presença de Henrique. Beatriz estava ligeiramente levantada, recostada no travesseiro, com o rosto lavado e os cabelos arranjados. Henrique rejubilou. «Ela está a melhorar!» Pensou. Conversaram durante algum tempo e já faziam planos para longos passeios pelos campos. Henrique estava tão feliz que só lhe apetecia abraçar a mulher. Não o podendo fazer, cobria-lhe o rosto de beijos. Ela sorria docemente. «Temos uma vida pela frente.» Dizia ele. Beatriz acenava com a cabeça concordante e os seus olhos brilhavam só por vê-lo assim tão feliz. Era assim que devia ser. Era essa a imagem que queria guardar dele. Ficaram algumas horas num idílio de amor e paz. Henrique chorava de felicidade e chegava-se mais perto de Beatriz para deixar que ela lhe secasse as lágrimas. Estavam no paraíso! No entanto, no fundo do olhar dela havia uma tristeza que ele não identificou, tal era a sua vontade de a ver recuperada. A tristeza de uma despedida! Quando ela começou a ficar cansada de falar ele quis deixá-la descansar. «Fica comigo um pouco mais meu amor!» Ele ficou. Não precisavam de palavras para dizer o que sentiam. O olhar e as mãos entrelaçadas diziam tudo. Beatriz faleceu nessa noite, nos braços dele. Henrique julgou enlouquecer de dor. Sentia-se oprimido naquele quarto. Precisava de tomar ar. Chegou-se ao varandim e, turvado pela dor, procurou o apoio dos merlões. O corpo lançou-se no infinito e, numa questão de segundos, embateu violentamente no chão de pedra que rodeava a torre. Teve morte instantânea!
O povo atribuiu tudo à maldição que, no seu dizer, também se tinha apossado da Torre. O abade tentou contrariar a crença, mas nada os convenceu do contrário. A verdade é que ninguém sabia a verdadeira razão da queda de Henrique e todos pensaram que se tinha suicidado. D. Alda Vasques, desgostosa com os acontecimentos, abandonou a Torre e doou-a, juntamente com as terras adjacentes, à Ordem dos Cavaleiros Hospitalários. A Torre, com ou sem maldição, nunca mais voltou a ser habitada.

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