A FIDALGA DA TORRE
Depois
de instalada, D. Alda fez saber que a capela da Torre seria aberta aos domingos
para celebração da missa. Estavam todos convidados. No primeiro domingo a
capela estava à pinha. Uns tinham vindo pela novidade, outros para conhecer a
fidalga e a sua afilhada e outros ainda porque assim não tinham que percorrer o
caminho até Vila Marim, para assistir à missa. Todos sem exceção tinham vestido
o seu melhor traje, não apenas a roupa de domingo como era usual. Marcaram
ainda presença alguns fidalgos das redondezas, que vieram satisfazer a
curiosidade. Todos partiram impressionados com a beleza e a elegância de
Beatriz, a afilhada de D. Alda. Ela tinha ofuscado tudo e todos, fazendo com
que D. Alda fosse relegada para segundo plano. A fidalga, ao invés de se
ofender, estava radiante, inchada de satisfação e orgulho com o desempenho da afilhada.
«Está na altura de lhe arranjar um marido.» Pensou. Sendo solteira e não tendo
descendência era sua intenção fazer dela herdeira dos seus bens.
D. Bártolo,
um fidalgo de Panoias, tinha sido um dos homens que marcara presença na missa
do domingo, acompanhado de sua esposa e, quando chegaram a casa, não se
cansaram de elogiar as qualidades da jovem Beatriz.
«É uma jovem de uma
beleza rara!» Dizia D. Bártolo.
«É uma simpatia.
D. Alda diz que é ela que lida com os assuntos da casa. É de uma mulher assim
que tu precisas.» Dizia a esposa, dirigindo-se ao filho mais velho.
Henrique
entusiasmava-se pouco com a perspetiva do casamento, mas as mulheres bonitas
eram a sua perdição. Talvez fosse mais apropriado dizer que ele era a perdição
das mulheres bonitas. Era um conquistador imaturo e irresponsável. «Tenho de
conhecer essa raridade!» Pensou. No dia seguinte, acordou cedo e depois de um
bom pequeno-almoço pôs-se a caminho de Quintela, levando no alforge comida para
o dia. Apesar das descrições dos progenitores, nada o tinha preparado para
aquela visão. Beatriz era celestial! A jovem estava sentada num banco de pedra
entre a Torre e a capela, falando com uma voz doce e melodiosa, para umas
quantas crianças, que bebiam as suas palavras. Estavam tão absorvidos que, nem
ela, nem as crianças se aperceberam da sua aproximação. Henrique observava a
cena sem coragem de a interromper. Tinha ficado sem palavras. Quando se
apercebeu da sua presença ela levantou-se e deu as boas vindas ao jovem. As
pernas vacilaram. Teve de se segurar para não cair. Ele, solícito, correu em
seu auxílio. O toque foi eletrizante! Ficaram os dois parados, presos no olhar
um do outro. Hipnotizados! Não foram necessárias palavras. O olhar dizia que se
pertenciam. Henrique tornou-se visita regular e em Agosto marcavam o casamento
para Outubro. Nunca se tinha visto um noivado tão curto. D. Alda preferia
assim, era tão raro um casamento por amor, que quando existia não era
necessário esperar. Foi uma cerimónia memorável. As tendas instaladas à volta
da Torre albergavam os convidados com pompa e circunstância. Às doze horas já
eles estavam casados e os festejos duraram até às vinte e duas.
Henrique
foi viver com Beatriz ocupando a parte de cima da Torre. D. Alda ocupava um dos
pisos intermédios e o piso térreo funcionava como sala de refeições. A cozinha
e a criadagem ocupavam os anexos. Henrique e Beatriz eram um casal perfeito.
Amavam-se perdidamente e a noite de núpcias ultrapassou todas as expetativas.
Na intimidade eles tinham ainda mais à vontade que no dia-a-dia. Os corpos
atraiam-se, desejavam-se e entregavam-se um ao outro com desvario, mas com
respeito. Descobriram que tinham uma capacidade incomum de satisfazer o outro e
isso tornou-os cúmplices de um segredo. O segredo do prazer! O que se passava
naquela alcova dava direito à excomunhão!
O frio
chegou no fim do mês de Outubro e durou até ao fim do inverno. A chuva e a neve
fustigaram os campos atrasando o avanço do seu cultivo. Finalmente chegou a
primavera. O mês de Março foi muito quente a as árvores acordaram do longo
período de hibernação, enfeitando-se com flores. Também os campos se cobriam de
verde, logo tingido de várias cores, qual pintura de Monet. Henrique e Beatriz apreciavam
o fim do dia visto das ameias da Torre. Lá no alto, o céu, de encontro ao
horizonte, por cima das serras do Marão e do Alvão, pintava-se de vermelho.
Visto de baixo parecia uma orla sangrenta. Era um por do sol guerreiro. A vista
era de perder o fôlego. A Torre ficava numa encosta. Para cima da Torre
erguia-se o casario dos súbditos, com pequenos quintais, rodeados dos pinhais
que também pertenciam à fidalga. Para baixo, no sentido sul e poente, ficavam
os campos agrícolas que desciam até à ribeira da Marinheira, curso de água que
ia engrossar o rio Cabril. Era uma terra rica, embora se desenvolvesse em
socalcos, o que tornava o seu cultivo mais trabalhoso. A alegria da chegada da
primavera foi, no entanto, interrompida por um incidente desagradável e com
consequências funestas. O capataz da D. Alda subiu a uma das cerejeiras, que
ficava nos terrenos logo abaixo da Torre, bem perto desta e escorregou na pele
traiçoeira da árvore. O embate no solo tirou-lhe instantaneamente a vida. Os
filhos já eram crescidos e ultrapassaram a morte do pai sem sobressaltos, mas a
mulher ficou inconsolável e consta que rogou pragas às cerejeiras. D. Alda
ajudou-a da forma que pôde. Conhecia bem a mulher e nunca acreditou em pragas
ou maldiçoes.
Já o
mês de Maio ia avançado quando as cerejeiras começaram a atrair os melros cobrindo-se
de um vermelho vivo. As primeiras cerejas estavam maduras. Os filhos do capataz
eram dois jovens brincalhões que costumavam divertir-se com a história da
cerejeira amaldiçoada. Certa noite, já depois da meia-noite, decidiram brincar
com o assunto e subiram cada um à sua cerejeira, munidos de um lampião. Quando
chegaram lá acima acenderam o lampião e começaram a comer cerejas. Apesar da
ajuda do lampião era uma tarefa difícil. Quando estavam a meio da função viram
que se aproximavam da Torre dois homens, que regressavam a casa já com dois
grãos na asa. Como estavam longe da estada falaram entre eles sem ser ouvidos e
combinaram abanar fortemente os ramos das árvores e depois começar a uivar. Os
homens, que já tinham reparado nas luzes que se moviam nas cerejeiras, ficaram
aterrorizados.
«Fujamos daqui que
o espírito do Ti Manel anda na cerejeira e veio acompanhado!» Dizia um para o
outro.
Não
tiveram tempo de o fazer pois quando começaram os uivos eles desataram aos
gritos.
«Acudam! Acudam!
Que os espíritos vieram para nos levar!»
O barulho
acabou por acordar os cachorros da aldeia que começaram a latir e a uivar.
Henrique, apesar de andar meio febril e isso lhe dar sonolência, acordou
também. Lá fora a noite estava fria e húmida, mas ele, ao ver as luzes na
cerejeira percebeu o que se passava e foi buscar a arma. Saiu para a rua de
meias e em pijama, armado de arcabuz, pondo-se aos tiros à cerejeira. Tinha
chovido. As ervas altas e o chão enlameado deixaram-no completamente encharcado.
Quando entrou na Torre tremia de frio e caiu para o lado. Os criados ajudaram a
levá-lo para a cama, mas mesmo depois de despertar ele não parava de tremer.
Beatriz esfregou-lhe o corpo com álcool, despiu-se, colou o seu corpo ao dele e
tapou-se com vários cobertores e mantas. Ao fim de meia hora Henrique parou de
tremer e o corpo ganhou vida. Beatriz vestiu-se e vestiu-o a ele também. Quando
o dia raiou, já toda a aldeia sabia que a maldição da tia Emília tinha funcionado.
Os espíritos tinham-se apossado da cerejeira e o fidalgo quis afugentá-los a
tiro, mas os espíritos tomaram conta do corpo dele e estava às portas da morte.
A saúde do fidalgo não era muito boa e nem os médicos que vieram de Vila Real
conseguiram justificar que um resfriado provocasse tanta tosse ao ponto de
encher os lenços de sangue. Beatriz era uma pessoa religiosa e por isso rezava
pedindo as melhoras do marido, mas não acreditava em espíritos e bruxedos, no
que era secundada pela D. Alda. As duas decidiram chamar um médico de Coimbra,
pelo que foi enviado mensageiro. O homem demoraria cinco dias a chegar a
Coimbra e depois tudo dependia da disponibilidade do médico. Regressou onze
dias depois com a notícia de que o médico viria na semana seguinte. Beatriz
tinha perdido toda a cor e a sua magreza era evidente. Fazia onze dias que não
saía da cabeceira do marido, não se alimentando, nem dormindo em condições. O
amor que sentia por Henrique dava-lhe força para tudo, para além disso ela
estava disposta a dar a sua vida para salvar o marido, por isso não olhava a
sacrifícios quando se tratava da saúde de Henrique. De nada valeram as
recomendações e os ralhetes de D. Alda ou da sua ama. Ao fim de dezasseis dias
Henrique levantou- se pela primeira vez e começou a caminhar pela casa, apesar
de ainda estar muito frágil. Beatriz ganhou novas forças e começou a alimentar-se,
mas durante a noite velava. O médico chegou dois dias depois de Henrique ter começado
a andar.
«Foi um resfriado.
O Senhor Fidalgo deve resguardar-se das correntes de ar.» Disse o médico, com
ar de entendido.
Quando
o Henrique recuperou e perante o diagnóstico do médico, o povo refreou-se e
começou a pôr em causa a história da maldição das cerejeiras.
«Os Branco estavam
bêbados. Se calhar não viram nada do que dizem!»
Dois
dias depois Beatriz adoeceu. O médico de Coimbra, que tinha aceite a
hospitalidade da fidalga, tentou de tudo para perceber o que ela tinha, mas não
havia exame, remédio, mesinha ou punção, que resolvesse o problema. Começaram
então a circular boatos de que Beatriz se tinha encostado, toda nua, ao marido
e que os espíritos tinham passado para ela, deixando o fidalgo viver.
Entretanto Beatriz piorava de dia para dia. Os sintomas eram os mesmos que
tinham afligido o marido. Uma tosse profunda que lhe rebentava o peito,
acompanhada de expetoração com sangue. O problema era que ela não comia. Estava
enfezada e sem cor. «Cruz! Credo! A menina tem cara de morta.» Dizia a ama.
Apesar
do sofrimento os olhos de Beatriz brilhavam quando Henrique estava a seu lado.
Ela tinha conseguido salvá-lo e isso era tudo o que ela queria. Ainda que
perdesse a vida o sacrifício tinha valido a pena. Era tal o amor que ela sentia
por ele que de bom grado aceitava o sofrimento cujo fim ela já antecipava: a
própria morte. Ela sentia que a terra clamava pelo seu corpo. Cada dia que
passava sentia que a sua ligação a este mundo era menor. Apenas quando Henrique
lhe dava a mão ela reanimava um pouco. Sem forças para fazer mais sorria-lhe e
apertava suavemente a sua mão. Henrique passava uma boa parte do tempo isolado
e a chorar. Sofria com a doença de Beatriz e sofria pelo facto de ela se
encontrar nesse estado por sua causa. Sofria duplamente! Quantas vezes ele se
ajoelhara perante a imagem de cristo crucificado, que encimava a capela e lhe
pedira para levar a sua vida em vez da de Beatriz. Também ele estava disposto a
dar a vida para salvar a dela. Mas o destino era incerto e traiçoeiro. Fazia as
suas próprias escolhas!
Depois
de uma semana em que o seu estado se tinha degradado muito, Beatriz apresentou
melhorias durante dois dias consecutivos, de tal forma que, no segundo, estava
com disposição para conversar. Era o fim da tarde. Ela pediu a presença de
Henrique. Beatriz estava ligeiramente levantada, recostada no travesseiro, com
o rosto lavado e os cabelos arranjados. Henrique rejubilou. «Ela está a
melhorar!» Pensou. Conversaram durante algum tempo e já faziam planos para
longos passeios pelos campos. Henrique estava tão feliz que só lhe apetecia
abraçar a mulher. Não o podendo fazer, cobria-lhe o rosto de beijos. Ela sorria
docemente. «Temos uma vida pela frente.» Dizia ele. Beatriz acenava com a
cabeça concordante e os seus olhos brilhavam só por vê-lo assim tão feliz. Era
assim que devia ser. Era essa a imagem que queria guardar dele. Ficaram algumas
horas num idílio de amor e paz. Henrique chorava de felicidade e chegava-se
mais perto de Beatriz para deixar que ela lhe secasse as lágrimas. Estavam no
paraíso! No entanto, no fundo do olhar dela havia uma tristeza que ele não
identificou, tal era a sua vontade de a ver recuperada. A tristeza de uma
despedida! Quando ela começou a ficar cansada de falar ele quis deixá-la
descansar. «Fica comigo um pouco mais meu amor!» Ele ficou. Não precisavam de
palavras para dizer o que sentiam. O olhar e as mãos entrelaçadas diziam tudo.
Beatriz faleceu nessa noite, nos braços dele. Henrique julgou enlouquecer de
dor. Sentia-se oprimido naquele quarto. Precisava de tomar ar. Chegou-se ao
varandim e, turvado pela dor, procurou o apoio dos merlões. O corpo lançou-se no infinito e, numa questão de segundos, embateu violentamente no chão de pedra que rodeava a torre. Teve morte instantânea!
O povo
atribuiu tudo à maldição que, no seu dizer, também se tinha apossado da Torre. O abade tentou contrariar a crença, mas nada os convenceu do contrário. A verdade é que ninguém sabia
a verdadeira razão da queda de Henrique e todos pensaram que se tinha suicidado. D.
Alda Vasques, desgostosa com os acontecimentos, abandonou a Torre e doou-a,
juntamente com as terras adjacentes, à Ordem dos Cavaleiros Hospitalários. A
Torre, com ou sem maldição, nunca mais voltou a ser habitada.
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