A SEMENTEIRA
O mês de Abril tinha sido pouco
profícuo em chuva e a terra ameaçava perder a sessão. Faustino organizou a
sementeira à pressa, tendo de contar com a participação da família toda, pois o
pessoal a rogo seria curto. Felizmente tinha conseguido contratar o Manuel
Jorge para ficar com uma das bordas e ele, com a ajuda do filho mais velho,
ficaria com a outra. Três dias antes, recebeu a notícia: o Manuel Jorge não
podia ir, tinha-se aleijado. A solução para o problema veio sob a forma de um
desafio. Serafim, o filho do compadre, ficaria com a borda aberta se o Mateus,
o seu sobrinho, ficasse com a outra. Serafim viria a rogo, o que era
interessante, mas colocava um peso sobre as costas do sobrinho, para o qual ele
não estava preparado. Serafim trabalhava no campo todos os dias enquanto o sobrinho
era estudante e apenas ia ao campo nas horas vagas.
«O tio
pode dizer ao Serafim que eu aceito o desafio.»
Mateus estava consciente das dificuldades
que iria enfrentar e sabia que o mais provável era o seu desempenho atrasar o
andamento da lavrada, mas estava disposto a correr o risco. Antes de tomar a
decisão foi dar uma vista de olhos ao terreno. A sementeira começaria às sete
da manhã, por isso ele teria que atuar na véspera, mas apenas depois do cair da
noite. Quando falou com o pai sobre a estratégia a adotar, ele achou a ideia
brilhante: também queria ver o Serafim levar uma lição.
A notícia do desfio caiu como um
relâmpago. Na aldeia faziam-se comentários e até algumas apostas. A situação
era tão desigual que os poucos que apostaram, estavam do lado do Serafim. O que
mais ninguém sabia era que Serafim tinha conseguido convencer a Amélia a
oferecer um ramo a quem vencesse a competição. A lavrada feita com arado,
atrelado aos bovinos, não é feita em toda a extensão do terreno. Nas bordas,
sobretudo quando muradas, fica por lavrar, o comprimento das vacas e do arado e
o mesmo tem de ser cavado pelos homens. Neste caso o Mateus ficaria do lado
murado e o Serafim do lado aberto, isso significaria que o espaço a cavar por
Mateus seria o dobro.
O carreiro chegou mais cedo. Trazia o
arado em cima do carro de bois, a vara às costas e um assobio nos lábios. A
descontração com que chegou não deixava adivinhar a rapidez com que desemparelhou
o carro e aparelhou o arado. As vacas tinham sido jungidas, usando um cambão
colorido, que assentava sobre as moleias enfeitadas. Estas, colocadas sobre a
cabeça dos animais, pareciam um penteado com franjinhas. As campainhas,
penduradas ao pescoço emitiam um som que indicava a proximidade e o ritmo dos
animais. Isso era providencial para a coordenação do trabalho de aplanar a
terra, revolvida pelas aivecas, feito pelos trabalhadores dispersos ao longo do
rego. As pessoas chegaram todas no espaço de cinco minutos e distribuíram-se ao
longo do campo, intercalando, quando possível, os homens e as mulheres. Nessa
altura, Serafim percebeu que era olhado com censura por todos. O desafio tinha
sido desigual. O seu rival não estava habituado a trabalhar no campo e teria
muito mais terreno para cavar. Mateus chegou em último e sorriu ao ver o olhar
de pena com que foi recebido. Para ele, perder ou ganhar, não tinha o mesmo
significado que para os restantes, para além disso, tinha uma carta na manga.
Serafim estava radiante. Iria receber publicamente um ramo da Amélia, uma
tradição quase em desuso e que lhe daria o direito de o usar na lapela, no
domingo, na missa e no bailarico. Amélia iria dançar com ele e quem sabe se não
podia ser o início de um grande amor. Ele amava-a e pretendia conquistá-la, mas
talvez tivesse sido prudente fazer as coisas de outra forma.
A arada do terreno começou e, depois de
abertos meia dúzia de regos, começou a perceber-se que Serafim poderia estar em
maus lençóis. A terra estava muito seca, à superfície, mas com alguma sessão
por baixo. O bico do arado penetrava-a e deslizava rapidamente, dando pouco
tempo aos homens das bordas para cavar o terreno. Ao invés, as enxadas debatiam-se
para conseguir a primeira cavadela. O estranho é que isso só acontecia do lado
do Serafim. Mateus enterrava a enxada na terra, como se esta fosse manteiga.
Era um fenómeno sem explicação! Talvez fosse mais correto dizer que era um
fenómeno cuja explicação apenas Mateus e o pai conheciam. Na véspera, eles
tinham passado duas horas a fazer furos na terra e a regá-la. Apesar disso,
Mateus tinha que se esforçar para manter o ritmo, mas o arado nunca parou por
sua causa. Ao início, Serafim ainda acompanhou o arado, mas no fim os braços e
as costas estavam tão doridos e cansados, que ele ficou para trás. Mateus
avançou com a sua borda, dando a volta pela frente dos restantes, enquanto o arado
parou para permitir que o Serafim completasse o seu lado. Estava terminada a
arada.
A chegada do homem da concertina,
acompanhado das três meninas, apanhou quase toda a gente desprevenida. Serafim
cabisbaixo cerrava os punhos para não derramar as lágrimas de raiva, que lhe
afloravam os olhos. Tinha sido imprudente. Tinha acabado de perder a
oportunidade de dançar com a Amélia, mas, pior do que isso, era tê-la empurrado
para os braços do Mateus. Amélia era uma moça bonita, mas simples. Não tinha
estudado e como tal todos lhe diziam que se devia contentar em casar-se com um
homem do campo. Alguém como o Serafim que era um excelente trabalhador e bom
rapaz. Apesar disso, ela ambicionava mais. A sua paixão por Mateus tinha sido
guardada religiosamente. Apenas Serafim a conhecia e isso depois de ter
insistido numa relação entre os dois. Ela não queria enganá-lo: podia namorar
com ele, mas era de outro que gostava. A concertina significava que tinha sido
encomendado um ramo. Quem seria o destinatário? O homem da concertina anunciou
a atribuição do ramo ao vencedor do desafio. Nesse momento todos perceberam a
intenção do Serafim. A intenção era boa, mas a forma de a concretizar tinha
deixado muito a desejar. Serafim tornou-se vítima do seu próprio estratagema.
Mateus não usou o ramo na lapela no
domingo seguinte. A aldeia inteira interrogou-se sobre o significado de tal
gesto. As opiniões dividiam-se, mas a maioria dizia que ele não tinha interesse
na Amélia. Quando a missa terminou, Mateus fez questão de se colocar ao lado de
Amélia e de a acompanhar durante o trajeto comum. Isso deixou os mais
bisbilhoteiros baralhados. Foi nessa altura que Amélia soube que Mateus não
tinha usado o ramo para não humilhar mais o Serafim. A espectativa para ao
baile da tarde estava nos píncaros!
Mateus
apareceu às quatro da tarde de ramo na mão. A notícia propagou-se como um
rastilho. Dançaram um par de músicas e, quando pararam, conversaram animadamente.
A aproximação de Serafim apanhou todos de surpresa. Tinha sido a irmã mais nova
de Mateus que o tinha ido chamar.
«Teria sido mais simples se tivesses falado
comigo. Pelo menos terias evitado a humilhação.» Disse Mateus
Em
seguida, entregou o ramo a Amélia e afastou-se, deixando Serafim de olhos
arregalados, mas profundamente envergonhado.
«O Mateus tem um bom coração, mas apesar de
eu gostar dele está fora do meu alcance. Se estás disposto a fazer com que eu
te ame eu aceito o teu pedido de namoro.» Disse Amélia.
Serafim
sentia os olhares dos presentes queimarem-lhe as costas. Só lhe apetecia
desaparecer: nunca tinha passado por tal humilhação. Mas a culpa era
exclusivamente dele. Para além disso, amava demais Amélia para lhe virar as
costas. Acenou com a cabeça e aceitou o ramo que ela lhe oferecia. O gesto de
Mateus andou de boca em boca e os elogios não foram regateados. Apesar disso,
não faltou quem dissesse que ele se julgava superior aos outros, por rejeitar
Amélia. O novo par rasgou o recinto com os seus paços de dança. Serafim estava
feliz a Amélia fazia questão de o ser. O amor faz milagres…
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