A MALHADA
O estio tinha sido intenso e, apesar do
Setembro já ir adiantado, o calor não dava sinais de abrandar. O milho do campo
dos Negrelos tinha amadurecido rapidamente e Bernardino queria aproveitar o bom
tempo, para acabar de o secar na eira. O processo passava, em primeiro lugar,
pela apanha do milho e consequente desfolhada e só depois disso podia ser
organizada a malhada. Era muito milho para ser malhado manualmente, mas a
verdade é que a malhadeira automática apenas viria para a região dentro de
quinze dias.
«Podíamos fazer como antigamente. A malhada
era feita em simultâneo com a desfolhada.» Disse a esposa.
Assim
mandava a tradição, antes de virem as malhadeiras. Bernardino ainda tinha
quatro manguais em perfeitas condições e tinha ensinado os filhos a
manobrá-los, pelo que a sugestão era pertinente. Depois de falar com alguns
vizinhos conseguiu garantir que tinha pessoas suficientes para fazer uma
malhada manual. A notícia espalhou-se como um rastilho e acabou por atrair
muita gente. A meda de espigas, ainda com o folhato, colocadas no centro da
eira, era grande. Quando percebeu o número de pessoa que viriam à desfolhada
Bernardino pediu aos filhos para espalharem um pouco as espigas, de forma a alargar o perímetro da
roda. Era necessário arranjar lugar para toda a gente. A malhada aconteceria no
Ladrilho. Uma zona coberta com o chão de pedra e espaço para rodar os caroços.
Os manguais seriam manobrados por Bernardino, pelo filho de dezanove anos e
pelos dois compadres. Com a exceção do filho, eram todos especialistas no uso
da ferramenta. A técnica era simples, mas manter o ritmo da batida, com a
técnica correta, exigia um grande esforço. O instrumento tinha duas peças
ligadas, entre si, por uma tira de cabedal, altamente resistente. O cabo do
mangual era manobrado de forma a fazer o malho rodar, no ar e bater com força
em cima das espigas do milho, em toda a sua extensão. Essa era a forma eficaz
de o utilizar. O milho era colocado numa meda, com comprimento para duas
pessoas manobrarem, uma ao lado da outra. Do outro lado da meda, ficariam as
outras duas pessoas. Os homens que se encontravam frente a frente tinham de
malhar a meda, de forma alternada e mantendo o ritmo, de forma a não baterem
com os malhos um no outro. Isso seria perigoso, para além de não ser eficaz.
No
início a malhada estava lenta, mas depois os cestos de espigas nuas começaram a
surgir a um ritmo avassalador. Quando a meda de grãos de milho começou a
aumentar, as duas mulheres tiveram que afastar o milho com rodos, arrastando-o
para o outro lado do ladrilho e com engaços levar os caroços, com algum milho,
de volta à meda da malhada. Ao fim de algum tempo, para além da meda da
malhada, existia no Ladrilho, um monte de milho e outro de caroços. O suor
escorria-lhes, em bica, pelo rosto. Abílio começou a sentir que os braços
pesavam toneladas e as costas se recusavam a dobrar. Olhava para a porta do
ladrilho e os cestos não paravam de entrar. Subitamente, atrás de um cesto,
entraram os quatro homens. Os malhadores foram apanhados de surpresa e quando
reagiram já eles estavam em cima da meda. Tinham chegado reforços! Os oito
homens conseguiram da vazão ao mar de cestos que não parava de chegar e a noite
foi um sucesso.
A
mesa tinha acabado de ser posta. Havia broa, presunto, salpicão, sardinhas
fritas e vinho a rodo. Nessa altura, ouviu-se a primeira concertina. O baile
estava aberto. A eira, que antes estava coberta de espigas de milho, era agora
pisada por dezenas de pés, num ritmo inebriante. Abílio sentiu o toque no
cotovelo e virou-se para trás. A Rosa sorria-lhe de forma encantadora. Num
gesto indicou-lhe que queria dançar. Ele, para além de tímido, nunca tinha
dançado. Deu um passo a trás e segredou-lhe.
«Não sei dançar!»
«Não importa. Eu ensino-te.»
E
assim foi. Durante várias músicas ele pisou-lhe os pés, até que começou a
atinar com o ritmo e lá foi ele rasgando o recinto, com a Rosa sempre a
sorrir-lhe. Ela travou-lhe um pouco o ritmo e chegou-se mais a ele.
«Vamos parar um pouco?»
Abílio
foi apanhado de surpresa. Sentia-se bem com a Rosa nos braços, mas se parassem
de dançar receava que não soubesse o que dizer-lhe. Sobretudo não queria
interromper aquela sensação maravilhosa de a ter nos braços. Pararam e, de
forma discreta, ela pegou-lhe no cotovelo e levou-o para um local afastado.
«Aqui podemos falar à vontade.»
Abílio
ficou calado a olhar para ela. Tinham-se afastado da eira, mas não da luz. O
luar que incidia sobre eles era quase tão intenso como a luz do gasómetro. Os
cabelos dela pareciam cheios de fios de prata e o rosto tinha-se tornado ainda
mais bonito. O luar incidia sobre ela de forma mágica. Essa combinação
inspirou-o.
«Tu és mesmo bonita!»
«Não sabia que me achavas bonita. Sempre me
ignoraste...»
«Eu não te ignorei. Apenas tinha receio que
me rejeitasses.»
«Não percebias pela forma como te olhava que
só tinha olhos para ti?»
«Isso não evitou que namorasses com o João
Nóbrega.»
«Tinha de arranjar alguma forma de te
espevitar, mas isso pareceu não te incomodar muito.»
«Só eu sei o quanto isso me magoou!»
«Quer dizer que gostas de mim?»
O
jeito coquete com que ela fez a pergunta deixou Abílio completamente desarmado.
Ele gostava tanto dela que até doía. Sonhava com ela, com olhos abertos e
fechados e ainda lhe custava a acreditar que estava ali sozinho com ela.
«Sim gosto de ti. Gosto de ti mais do que sei
dizer-te.»
Ela
ficou séria e ele arrependeu-se de imediato da confissão. Tinha estado a
brincar com ele e ia rejeitá-lo. Era por isso que ele não tomava aquele tipo de
iniciativa. Rosa tocou-lhe o rosto e chegou-se a ele. Aquilo não podia estar a
acontecer. Ela ia mesmo beijá-lo? Abílio não resistiu e segurou-a pela cintura.
Ela pendurou-se no pescoço dele e os lábios encontraram-se num toque suave.
Eram os dois inexperientes e o beijo foi desajeitado. Abílio segurou-lhe o
rosto e o segundo beijo foi uma fusão de lábios que os fez estremecer.
Apertaram os corpos um contra o outro e, sem se aperceberem, as línguas
cruzaram-se numa descarga elétrica, que deu verdadeiro significado ao beijo. Os
beijos incendiaram-lhes os corpos e as mãos alimentaram a chama. Acariciaram-se
sem pudor, sentido e dando prazer, de uma forma que ambos desconheciam. Tiveram
que se controlar para não se entregarem, ali mesmo, um ao outro. Era um local
demasiado público e estavam no seu primeiro encontro. Abraçaram-se, mostrando
com o corpo, o desejo que lhes consumia a alma.
«Eu estou perdidamente apaixonada por ti.»
Disse Rosa.
«Eu também estou apaixonado por ti. Ainda me
custa a acreditar que uma mulher como tu goste de mim. Queres ser minha
namorada?»
«Sim.»
A
resposta simples foi acompanhada de um sorriso e seguida de um beijo, longo e
apaixonado. Unidos num abraço, que fundia os dois seres, eles dirigiram-se para
a eira. Era altura de anunciar ao mundo o seu amor.
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