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A PROCISSÃO



A PROCISSÃO

A desavença entre as duas famílias já durava havia várias gerações. Ninguém sabia ao certo como havia começado, pois apenas se preocupavam em dar-lhes continuidade. Os acontecimentos desse ano iriam representar o ponto mais alto do conflito. A festa, em honra de Santa Marinha, padroeira de Vila Marim, teria lugar no último fim de semana de Agosto, mas os preparativos tinham começado um ano antes. A festa foi lançada a um grupo de mordomos pouco ortodoxo. Uma parte deles não era partidário de festas, muito menos da sua organização. Foi uma decisão arriscada, que acabou por se revelar quase providencial. O grupo aceitou o desafio e, com uma liderança forte, estava em vias de organizar a melhor festa dos últimos anos. Haveria banda filarmónica, fanfarra dos bombeiros, dois conjuntos a tocar ao vivo, o maior fogo-de-artifício de sempre e uma procissão com um número de andores recorde.
Os andores estavam alinhados, em várias filas, no adro da igreja. Gradualmente, os homens e mulheres que os iam transportar foram-se aproximando destes e definindo a posição que cada um ocuparia e a estratégia para transportarem o respetivo andor, durante o longo trajeto a percorrer. Todos eles tinham trazido uma toalha, que seria dobrada e colocada no ombro, onde o andor poisaria. O ombro agradecia. Vasco chefiava o grupo de seis pessoas que iria levar o andor de São Roque. Os amigos tinham aceitado o desafio sem conhecer os motivos que o tinham levado a essa decisão, bastou-lhes o seu pedido.
«Este ano preciso de levar o andor de São Roque com um grupo de cinco amigos e vocês foram os escolhidos.»
Vasco era um jovem simples. Depois de completado o decimo primeiro ano tinha ido trabalhar. O emprego na repartição de finanças, de Vila Real, fazia dele uma pessoa importante, numa aldeia em que se vivia, maioritariamente, da agricultura e da construção civil. Pertencia a uma minoria que se julgava, muitas vezes, superior aos restantes. Apesar disso, o seu comportamento era o oposto. Tinha, por isso, muitos amigos, distribuídos por todas as camadas sociais.
O presidente da comissão de mordomos aproximou-se, seguido por seis jovens e instalou-se a confusão.
«O Francisco pagou a armação do andor, por isso é ele que decide quem o leva.»
«Nós acordamos com a comissão de mordomos, em Dezembro, que seria o meu grupo a transportar o andor.» Ripostou Vasco.
Vasco tinha falado com o mordomo responsável pelos andores e tinha ficado tudo acordado, apenas condicionado ao facto de o andor poder vir a ser pago por alguém. O problema era que o mordomo se tinha esquecido de o informar que o andor tinha sido pago. Apesar disso, Vasco estava determinado a levar o andor. Sabia que o Francisco tinha esse direito, mas ele tinha a sua razão. A situação degenerou rapidamente em conflito, que ameaçava assumir proporções épicas, quando os familiares se juntaram à contenda. Vieram ao cimo rancores antigos e o esgrimir de argumentos rapidamente se transformou em ameaças e em insultos, que adivinhavam um desfecho com confronto físico. Francisco não percebia a teimosia do Vasco em levar o andor. Eram ambos da mesma idade e, embora não fossem grandes amigos, tinham convivido na mesma escola, até ao decimo primeiro ano, sem conflitos entre eles. Depois tinham seguido caminhos diferentes. Francisco tinha ido para Lisboa estudar e terminara, no ano anterior, a faculdade, sendo docente universitário. O andor tinha sido pago com os primeiros ordenados. Tinha-o feito para ajudar os mordomos e, como sempre tinha querido levar um andor, juntou o útil ao agradável, para garantir direito a tal.
As autoridades acalmaram os ânimos e a comissão de mordomos tentou resolver a questão, falando com cada uma das famílias em separado.
«Explica lá porque fazes tanta questão em levar o andor.» Perguntou o presidente da comissão.
Vasco tinha guardado segredo da sua intenção, mas percebeu que se não a divulgasse perderia qualquer hipótese de sair vencedor da disputa. O problema era que as razões que o assistiam não se sobrepunham ao direito do Francisco.
«Eu prometi que se ficasse curado de uma doença venérea, que tive no ano passado, levaria o andor de São Roque, juntamente com cinco amigos, escolhidos por mim.»                                             
«Mas antes de fazeres a promessa devias ter garantido o direito a levar o andor.»
«Foi o que fiz, quando falei com o mordomo responsável!»
A comissão tinha falhado, mas isso não resolvia o problema. A decisão estava nas mãos do Francisco. Este quando soube das razões do Vasco pediu à família para se afastar do recinto e o deixar resolver a questão. Apesar de jovem, tinha uma grande autoridade no seio desta e eles afastaram-se, embora com os rostos fechados. Entretanto, o presidente da comissão de mordomos, que era padrinho dele, pediu-lhe segredo sobre a promessa de Vasco.
«Sempre tive uma boa opinião de ti, por isso acredito que tenhas boas razões para justificar a tua pretensão. Não te vou perguntar quais são, vou apenas confiar em ti. Fica na tua consciência.»
Nem o Vasco, nem a família, estavam à espera daquele desfecho. Tinham imaginado o Francisco a pedir à Guarda para os afastar e estavam tensos e prontos para a luta. As palavras de Francisco deixaram-nos desarmados. Vasco ficou mudo e baixou a cabeça. A nobreza da atitude do Francisco tinha-o deixado envergonhado.
«Obrigado.»
As palavras saíram-lhe num sussurro, mas perfeitamente audíveis. Francisco sorriu, tocou-lhe no ombro, num gesto solidário e virou costas. A família de Vasco afastou-se em silêncio. Estavam acabrunhados. Na cabeça deles a passividade da família do Francisco não fazia qualquer sentido. Esse não era o comportamento esperado de uma família rival e em elação à qual sempre tinham feito o pior juízo. A forma inusitada como o conflito tinha terminado tornou-se, rapidamente, o mexerico mais importante da aldeia. Havias opiniões para todos os gostos.
«Os ares de Lisboa amoleceram o Francisco. Noutros tempos a família do Vasco tinha sido corrida à paulada!»
Essa era a opinião predominante. Vasco, depois de falar com o presidente da comissão dos mordomos, ficou a saber que o Francisco conhecia as suas razões. Nessa altura reuniu a família e contou-lhes tudo. Em conjunto tomaram consciência dos danos que o Francisco podia ter provocado ao Vasco e não podiam deixar passar isso em claro. A decisão foi coletiva: iam tomar uma atitude firme.
O baile tinha começado, mesmo antes do conjunto começar a atuar. O Piqué lançava, para o éter, músicas de dança e velhos e novos enchiam a pista do largo da capela. A família de Francisco estava toda junta, ouvindo-o contar umas anedotas, num dos lados do recinto. O rapaz tinha piada! Quando a família do Vasco entrou no recinto, em grupo e se dirigiu ao local onde estava Francisco, o baile parou. As pessoas afastaram-se todas, receosas do que iria acontecer. As autoridades não estavam por ali e alguém foi chamar os mordomos. Era caso para derramamento de sangue. A família de Francisco alinhou atrás dele, prontos para responder ao ataque. Francisco adiantou-se alguns passos e Vasco fez o mesmo.
«Olá Vasco.»
«Olá. O meu pai quer falar com o teu.»
As palavras caíram como uma bomba. Não houve desafios nem insultos. Algo de inédito se estava a passar. Francisco fez sinal ao pai para se aproximar. O resto da família ficou inquieta, quando viram o gigante, que era o pai do Vasco, avançar. Estavam preparados para o pior. A tensão no ar era de cortar à faca. As autoridades e os mordomos chegaram em grande alvoroço, mas era tarde demais. O pai de Vasco, sem pronunciar qualquer palavra estendeu a mão para o pai de Francisco. Este olhou-o com espanto e hesitou. Quando percebeu, no olhar do arqui-inimigo, qual era a intenção, apertou-lhe a mão com firmeza. Foram muitas as palavras trocadas e as explicações dadas, nessa noite, mas ficaram todas entre eles. O certo é que as famílias se tornaram amigas e Vasco e Francisco inseparáveis. Os alcoviteiros, criaram os inevitáveis mexericos, inventando as mais variadas histórias e justificações, não faltando quem classificasse a amizade entre as duas famílias como um milagre de São Roque.

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