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O DECRETO REAL



Pseudónimo: Fernando Balão

O DECRETO REAL

Em Lisboa as mudanças sucediam-se. O Marquês de Pombal tinha resignado ao cargo no que foi substituído pelo Visconde de Vila Nova de Cerveira, ao serviço de uma rainha louca que sucedia a um rei falecido. Neste contexto de turbulência, Vila Real era um oásis de estabilidade. A coexistência de vários grupos profissionais com uma hierarquia perfeitamente definida era o seu garante. Aquilo que andava na boca das gentes, independentemente da classe a que pertenciam, eram as obras do casarão da rua Central. Não sendo uma casa brasonada era maior e mais confortável que muitas das que o eram. Seguramente que estaria iminente a sua ocupação pelo seu proprietário: um fidalgo. As obras ficaram concluídas em Junho de 1778 e a família chegou nos primeiros dias de Julho. A instalação não foi pacífica pois a família não possuía qualquer título a não ser o de proprietário da casa e de vastas terras nos arredores da vila. Os fidalgos que habitavam a zona nobre da cidade demonstraram o seu descontentamento e tentaram arregimentar para a causa o Morgado de Mateus, recentemente regressado do Brasil, onde durante dez anos tinha sido governador de S. Paulo. 
«Tende reserva no vosso comportamento e cuidado com vossas palavras. Consta que o título de propriedade foi assinado pelo mui ilustríssimo Marquês da Angeja, na sua qualidade de Ministro-adjunto e do Despacho do reino. O documento é um autêntico decreto Real!» 
A resposta do Morgado foi suficiente para esfriar os ânimos e nunca mais ninguém falou no assunto. 
Decorreram três anos e a adolescente que tinha entrado naquela casa tornou-se uma mulher. Leonor, com dezoito anos, quando passeava pela rua, sempre acompanhada de uma aia, fazia parar as carruagens e desmontar os cavaleiros, fidalgos ou não, tal era a sua beleza. Simpática e sorridente cumprimentava todos com afabilidade, deixando os mais humildes desconcertados e os restantes incomodados. A sua beleza tornou-se famosa nas redondezas, mas sendo demasiado rica para os proprietários e não tendo nenhum título, não teve nunca nenhum pretendente. Ela não se incomodava com isso, mas a mãe vivia apoquentada com o facto. 
Aquilo que aconteceu nunca foi devidamente esclarecido. Cavaleiro e cavalo eram demasiado bons para permitir aquele acidente! Era Maio, mas o dia acordou invernoso. O vento e a chuva ameaçavam não dar sossego a ninguém. O cavaleiro, já sem vida, foi encontrado no fundo da ravina ao lado do cavalo que, apesar de maltratado, sobrevivera. Mãe e filha choraram amargamente a perda do ente querido: a casa ficou de luto durante uma semana. Era tempo de reagir. D. Josefa, ajudada pela filha Leonor, começou a tomar as rédeas dos negócios. A dona da casa chamou o jovem Joaquim, que era o braço direito do falecido marido e deu-lhe as instruções necessárias. Apesar de ter apenas vinte e oito anos era um jovem inteligente e expedito. Cuidava das propriedades, como ajudante do pai, desde muito antes da vinda dos Sousa. Logo após a chegada destes os pais faleceram e eles trataram-no como um filho. Incentivado pelos patrões tinha feito a quarta classe e Leonor costumava empestar-lhe livros para ele ler. Eram como irmãos! 
Josefa passou a dedicar uma parte do seu dia para decidir assuntos relacionados com as propriedades, sempre com a concordância de Joaquim. Leonor voltou à sua rotina e Vila Real voltou a ser bafejada com a sua presença e sorriso. A vida corria com normalidade, mas na sombra agigantava-se uma onda de maldade, capaz de os engolir. O mês de Julho de 1782 começou quente e, na hora do maior calor, os dias convidavam à recolha no aconchego do lar. O pequeno jardim, nas traseiras da casa de Leonor, era um oásis. O longo banco de pedra, com costas arredondadas, permitia gozar da sombra das árvores e da vista do pequeno lago, onde dois cisnes flutuavam com elegância. Sendo um jardim murado Leonor usufruía da privacidade do local com segurança e tranquilidade. Não muito longe ficava um apeadeiro para cavalos, por isso era comum os cavaleiros, fidalgos ou proprietários, passarem junto do jardim a caminho da rua Central ou da Vila Velha. Com o calor que se fazia sentir a rua estava deserta. Leonor, invetivada pelos melros que debicavam as últimas cerejas, começou a cantar. A sua voz de soprano entoava uma área melodiosa, em latim, que parecia um canto celestial. Até os rouxinóis se calaram para a ouvir. Por entre a densa folhagem dos arbustos, que se erguiam acima do muro, pareceu-lhe vislumbrar o rosto de um estranho. Refugiou-se dentro de casa pedindo aos criados que fossem ver quem era. Foi em vão. A rua estava completamente deserta.
No dia seguinte quando Leonor saiu, à tardinha, para o seu passeio. Um jovem garboso, vestido como um fidalgo, aproximou-se dela. 
«Boa tarde. A menina Leonor permite-me que a acompanhe?»  
Leonor estremeceu. Era a primeira vez que recebia um pedido daqueles. O jovem era bonito e atlético, mas o que a prendeu foi o sorriso. Levantou a cabeça para o olhar de frente. Nessa altura percebeu que toda a gente na praça olhava para eles. As jovens fixavam-se nele, derretidas, as mulheres mais velhas olhavam para ela com desdém e os homens olhavam para os dois espantados e na expectativa. O rapaz devia ser alguém importante, mas a verdade era que ela não o conhecia. Sorriu e disse que gostava de passear sozinha. Durante todo o mês de Julho ele repetiu o mesmo pedido, sempre com o mesmo sorriso e a mesma educação. Nessa altura já ela sabia quem ele era. Após um pedido formal, D. Josefa autorizou o jovem a acompanhar Leonor e este passou a ser recebido em casa. No fim do mês de Agosto já eles estavam perdidos de amor. Por essa altura Pedro conseguiu com que a mãe e a filha fossem convidadas para um sarau na casa do Morgado de Mateus. Aquilo que se passou nessa noite iria despoletar um conjunto de acontecimentos trágicos e com um final imprevisível. A fidalguia local estava toda presente. A hostilidade era óbvia e o Morgado de Poiares arregimentava os fidalgos para a sua causa. A dona da casa, a pedido de Pedro, convidou Leonor para cantar. Apanhada de surpresa e por uma questão de respeito, ela aceitou. A jovem que tocava piano foi afastada por uma mãe exaltada. Faltava o acompanhamento. Quando Leonor se sentou a maioria dos fidalgos ignorou-a.  A destreza com que tocava cativou alguns dos presentes, mas quando a sua voz se elevou no salão o silêncio foi total. Estavam todos a seus pés. A explosão de palmas e vivas foi espontânea e sincera, mas rapidamente interrompida. Eles não podiam dar-lhe aquele acolhimento. Ela não pertencia à classe deles! Apesar do distanciamento, a atuação dela serviu para criar alguma proximidade e os convivas deixaram de fugir dela como se tivesse lepra. Pedro pediu a palavra. Depois de um agradecimento especial à dona da casa, a D. Josefa e a Leonor, disse: 
«Quero aproveitar o ensejo para anunciar o meu noivado com a Leonor, se ela me aceitar como tal.» 
Ele estava ajoelhado na sua frente. Leonor sem saber o que fazer estendeu-lhe a mão para o levantar e ele, segurando-a, colocou-lhe o anel de noivado no dedo. Ela não sabia como reagir. Amava aquele jovem, mas o noivado era um passo muito sério e eles pertenciam a classes diferentes. D. Josefa percebeu tudo e veio em auxílio da filha. Agradeceram à dona da casa e retiraram-se. A sala ficou em polvorosa! Eram muitas as jovens que ambicionavam noivar com Pedro e muitas as casas que desejavam uma aliança com a família deste, embora os pais estivessem exilados no Brasil, por razões pouco claras. 
Com a exceção do Morgado de Mateus, os fidalgos estavam todos contra aquele casamento, mas existia um especialmente revoltado com o facto: O Morgado de Poiares. As suas terras confrontavam com as da família Sousa, sendo as dele de bem pior qualidade. Ele queria aquelas terras a toda a força. Nesse mesmo dia mandou chamar o Cavaleiro que tinha caído em desgraça e tinha perdido as terras que agora pertenciam aos Sousa. A troco de uma soma considerável de dinheiro fê-lo assinar um acordo de cedência dessas terras ao mesmo tempo que o obrigava a entrar com uma demanda, destinada a reclamar o direito sobre as mesmas. Para Lisboa partiu um correio alertando o procurador da família de Pedro sobre a desgraça que cairia sobre a mesma com aquele casamento. 
Joaquim tinha armado dez homens e estes passaram a ocupar o anexo do casarão, estando sempre três de guarda. Isso tinha sido providencial. Que o digam os dez homens que foram abatidos, sem dó nem piedade, enviados, em segredo, pelo Morgado de Poiares. O procurador da família de Pedro tinha chegado a Vila Real e ordenou que este ficasse retido em casa. D. Josefa foi chamada perante os homens bons e informada da pretensão do Cavaleiro, bem como da proibição de Leonor se encontrar com Pedro. Leonor, sentada no jardim olhava para o objeto que tinha nas mãos. O seu valor material era nulo, mas se o utilizasse ele podia ser a sua salvação. Levantou a cabeça, o seu rosto sério tinha uma nobreza digna de uma rainha. A resolução estava tomada!
A audição das partes tinha começado. O Cavaleiro era um tonto e um alcoólico. O Morgado de Poiares fez com que ele o nomeasse seu procurador na causa. Tratava-se de um homem malvado e sem escrúpulos, mas astuto e hábil. Ninguém gostava de o ter como inimigo. Quando ele acabou de apresentar o caso parecia que a sentença era óbvia. D. Josefa pediu que a filha representasse a família. Foi uma decisão polémica pelo facto de ela ser mulher, mas a qualidade de herdeira dos títulos de propriedade prevaleceu. O sorriso que o Morgado de Poiares sustentava nos lábios foi desaparecendo à medida que ela foi falando e quando esta terminou ele estava de punhos cerrados e com o rosto crispado de raiva. Depois da sua argumentação Leonor concluiu: 
«As terras foram doadas por Sua Alteza aos meus pais e herdeiros. Assim, todas as acusações feitas pelo reclamante a quem lhe retirou as terras, são acusações feitas ao Rei, sendo qualificáveis como um ato de traição.» 
O tribunal foi invadido pelos homens do Morgado de Poiares e a confusão instalou-se. Os juízes foram intimados a sentenciar o caso a favor do Cavaleiro sob a ameaça das armas. A família Sousa para além de perder as suas terras deveria ser executada, nesse mesmo dia, em praça pública. D. Josefa abraçou a filha e ambas rezaram. A mãe encomendando a alma e a filha por um milagre. 
As portas do tribunal foram abertas com grande estrondo e o tribunal tomado de surpresa pelos militares. O Marques de Angeja, em pessoa, entrou escoltado pelo comandante do destacamento militar de Vila Real. «O anel chegou a tempo!» Pensou Leonor. O tribunal, livre da ameaça, decidiu a favor da família Sousa e condenou o Cavaleiro a pagar-lhe uma indemnização. O Morgado de Poiares teve de pagar uma multa ao tribunal e caiu em desgraça, tendo-se remetido aos seus domínios. Passados poucos meses e no espaço de dias, a esposa faleceu e o filho morreu numa corrida de cavalos. O Morgado não aguentou o desgosto e suicidou-se. A decisão do tribunal foi bem aceite por todos os fidalgos pois aquilo que os incomodava era o casamento de uma plebeia com um alto membro da fidalguia e isso tinha sido resolvido pelo procurador da família de Pedro. Foi por isso que a declaração do Ministro do Despacho do Reino caiu como uma bomba, no círculo social de Vila Real. Leonor era filha de um conde espanhol que tinha sido mandado matar pelo Rei do Carlos III de Espanha, por este se ter oposto à declaração de guerra feita a Portugal em 1762. Como única filha ela tinha direito a usar o título de condessa, embora não possuísse as propriedades associadas ao mesmo. Leonor recusou o título e declarou que a sua mãe era D. Josefa e o seu pai o falecido esposo dela. Apesar disso, todos passaram a considerá-la como condessa, embora não usassem o título. 
O procurador da família de Pedro partiu deixando-lhe os recursos necessários para adquirir as terras do Morgado de Poiares. Pretendia casar com Leonor e juntar as propriedades, tornando-se um dos grandes morgados de Vila Real. O reencontro com Leonor foi como uma ressurreição. Os dois jovens amavam-se perdidamente, ao ponto de dar a vida um pelo outro. Pedro tinha demonstrado o quanto a amava ao estar disposto a desposá-la, mesmo quando julgava estar perante uma plebeia e ela tinha isso bem presente. Ele tomou-lhe a mão e beijou-a. Leonor levantou o rosto e perdeu-se no mar azul e tranquilizador do olhar dele. Unia-os um amor tão intenso que fundia as suas almas e os seus corpos num só. Ela segurou-lhe o rosto com as duas mãos e trocaram o primeiro beijo. Os corpos, roçando-se levemente, estremeceram de prazer. O beijo foi intenso, profundo e eletrizante. Os lábios entreabriram-se para que as línguas se digladiassem, em passos de uma dança guerreira, para depois se entrelaçarem numa valsa ritmada e finalmente se renderem, numa explosão de prazer. A expressão dos dois era de uma felicidade inenarrável. Os rostos possuíam uma luz especial e os olhos um brilho ofuscante. Envolvia-os uma aura pura e resplandecente. Eram a imagem do amor!
Quando o beijo terminou eles sentiram que estavam unidos para a eternidade.  
O casamento aconteceu no ano seguinte. Pedro e Leonor mal podiam esperar pelo dia, tal era o desejo de se encontrarem na intimidade. Os mesmos fidalgos que a tinham desprezado, ajoelhavam-se a seus pés, num beija-mão. Leonor evitava-os, mas quando isso não era possível, estendia a mão recebendo o ósculo da hipocrisia. O importante era a sua felicidade, era aquele amor que a fazia flutuar. Ela e Pedro passavam horas no jardim a conversar num enlevo enternecedor. O manto do amor envolvia-os e protegia-os das questiúnculas da sociedade. Viviam num mundo só seu. Amavam-se e isso bastava-lhes.

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