INTERJEIÇÕES DO ÓBVIO
As imperfeições do traço faziam realçar ainda mais a
beleza do nu artístico. A inquietude da imagem, desenhada a carvão sobre a tela,
parecia o reflexo da ansiedade que o dominava. Tal como a imagem, estática,
presa à tela, parecia querer saltar da parede para o seu colo, ele queria
desaparecer daquele local. As quatro paredes do escritório sufocavam-no,
oprimiam-no, dando-lhe vontade de gritar. Gritar por liberdade, gritar por uma
oportunidade, por um local onde pudesse ser quem era. O matraquear da chuva na
vidraça cativou a sua atenção. Ignorou o quadro.
Levantou-se e caminhou de um lado para o outro. Estava
cansado. Não era um cansaço físico, era algo mais profundo, mais incomodativo.
Era uma interrogação sobre o verdadeiro sentido da vida. O sentido da sua vida!
A sua ascensão, em termos profissionais, tinha sido meteórica. Aos trinta e
sete anos era vice- presidente de um grupo segurador, mas isso, ao invés de lhe
dar a satisfação que havia antecipado, deixava-o num estado de desconforto que
se lhe apresentava como uma autêntica surpresa. Se tinha tudo com que havia
sonhado porque razão sentia que estava incompleto? A situação profissional
estava resolvida: foi arrumada na respetiva prateleira.
O telefone tocou. Era o Pedro a relembrá-lo do jantar de
logo à noite. Não havia jantar sem a sua presença. Ele era um dos esteios do
grupo. Quase tudo girava à volta dele. Isso não resultava apenas do facto de ser
divertido, simpático e culto. Era fundamentalmente uma consequência de ser um
verdadeiro amigo, daqueles que é capaz de tirar a camisa para a dar a vestir ao
outro. A namorada não ia estar presente porque estava em viagem de trabalho, o
que acontecia com alguma frequência.
«Olha a Matilde vai lá
estar.» Disse Pedro, mesmo antes de desligar.
Mais uma prateleira arrumada. Voltou a sentar-se e a fixar
o olhar no quadro. Olhava fixamente para pintura mas não a via. No lugar do nu
artístico estavam as feições da Matilde. «Que diabo!» Repreendeu-se a si
próprio. Matilde era exatamente o oposto da sua noiva. Apesar de ambas serem
bonitas e com um corpo muito interessante: uma era loira outra morena. A noiva
valorizava a carreira acima de tudo e de todos, enquanto Matilde vivia para os
outros. A noiva era simpática, mas gostava de evidenciar a sua superioridade,
enquanto Matilde era a simplicidade em pessoa. A primeira era de uma
inteligência analítica suprema, a Matilde inclinava-se mais para a inteligência
emocional.
«Vocês formam o par
ideal!» Diziam todos.
Juntos brilhavam em qualquer evento ou local, mas eram
duas pessoas sempre e a todo o momento. «Eu estou noivo. Esta comparação não
faz sentido nenhum.» Pensou. Estava na hora da reunião. O conselho de
administração demorou três horas. A meio já estava enfadado. Tinha cada vez
menos paciência para aquelas conversas estéreis e para a feira de vaidades, com
que se pavoneavam a maioria dos presentes. Finalmente a reunião acabou.
O jantar foi fantástico. Por sortilégio do destino a
Matilde ficou ao lado dele. Isso deixou-o estranhamente confortável.
Normalmente disputavam a atenção do grupo, uma disputa saudável mas
competitiva. Nessa noite, sem necessidade de qualquer acordo prévio, formaram
uma equipa. Em conjunto brilhavam muito mais do que em disputa. Matilde
elevava-o, fazia vir ao de cima o que de melhor havia nele. Isso elevava-a a
ela também. Ele tinha ido de Uber por isso, no fim da noite, Matilde foi
levá-lo a casa. Ela dobrou-se na direção dele para lhe dar um beijo de
despedida. A hesitação na forma de aproximação, fez com que os lábios se
tocassem inadvertidamente. Beijaram-se. Foi um beijo apaixonado. Naquele beijo
estavam todos os sentimentos contidos durante vários anos, de forma
inconsciente e consciente. Matilde convidou-o a subir e passaram a noite juntos. Quando
acordou ela ainda estava a dormir. Ficou a olhar para ela com um sorriso. O
noivado tinha chegado ao fim. A naturalidade com que encarou isso surpreendeu-o
uma vez mais. Sentiu-se invadir por uma paz e uma tranquilidade que não sentia
fazia anos. Era óbvio que a responsável por isso era a Matilde!
Comentários
Enviar um comentário