O PAI VEIO NO NATAL
Filipe
tinha regressado a Portugal fazia três meses. Todos os dias ele prometia a si
próprio que no dia seguinte contactaria a filha e a neta. Todos os dias ele
quebrava a promessa. Não tinha coragem. Vinha-lhe à memória tudo o que a mulher
o fizera passar, com a ajuda do irmão que o odiava. Um ódio estúpido que tinha
nascido no dia em que não o apoiou no desenvolvimento de um negócio que
entendia ser ruinoso. Fora esse mesmo negócio que tinha levado os dois irmãos à
falência, logo após o seu divórcio. Filipe tinha quarenta anos quando se
apaixonou por uma mulher dez anos mais nova. A única filha do casal tinha doze
anos e o divórcio foi desastroso. Filipe nunca se tinha perdoado por se ter
afastado da filha, mas a mulher não lhe deu outra opção. Juntamente com o irmão
tinham fabricado uma agressão em que Lurdes era a vítima e ele o agressor. Ele
ficou proibido de se aproximar da família. Não aguentou viver perto da filha
sem a poder ver e emigrou. Foi viver para o Brasil onde construiu um império,
ancorado no imobiliário. Os problemas de segurança no Brasil tinham-no trazido
de volta. A filha tinha quarenta e dois anos e a neta tinha vinte e dois e estava
a concluir o mestrado. Apesar da distância, todos os meses, até à mulher morrer,
ele fazia a transferência. O valor transferido foi sempre superior ao acordado,
sobretudo a partir da data em que ela perdeu tudo no negócio do irmão, que na
sequência pôs fim à vida.
No
leito da morte Lurdes contou a verdade à filha. Marta pensou no pai com
arrependimento. Ela tinha tido um papel ativo no divórcio. Fora ela que
testemunhara que tinha visto, um homem que sem parecia com o pai, fugir depois de
agredir a mãe. Agora percebia porquê: o tio tinha vestido as roupas do pai!
Foram várias as vezes em que pegou no telefone para lhe ligar mas nunca teve
coragem para o fazer. Ela tinha sido um instrumento nas mãos da mãe e agora que
tinha uma filha imaginava como o pai se devia ter sentido ao ser obrigado a
afastar-se. Durante vários dias chorou de desgosto e arrependimento mas nada
fez para clarificar a situação. A relação tinha sido quebrada há muito tempo.
Era tarde demais para restaurar os laços. Patrícia, a filha, perguntava muitas
vezes pelo avô mas nunca lhe tinham dito quem ele era. Apenas depois da morte
da avó ficou a saber a verdade. Isso tinha acontecido dois anos antes de ter
sido noticiado o regresso de Filipe Costa Moura, a Portugal. Patrícia lia
avidamente tudo o que se escrevia sobre o avô e sobre o tio Pedro. Aparentemente
o tio era um génio. Apesar da insistência da mãe para que ela deixasse as
coisas como estavam ela tinha uma grande vontade de conhecer, quer um quer
outro. Pedro sabia da existência da meia-irmã e da sobrinha mas isso não lhe
dizia nada.
Pedro,
na qualidade de professor da Universidade Nova, de Lisboa, tinha sido convidado
para júri de uma tese de mestrado de uma aluna da Universidade Católica. A tese
era fabulosa e como incidia sobre um assunto em que era especialista, leu-a e
releu-a várias vezes. Estava encantado com o facto de ser ele o arguente. Ela
entrou na sala e parou de imediato. Os olhos fixaram-se em Pedro e abriram-se
desmesuradamente. Ele apercebeu-se da transformação mas não a entendeu e não
esboçou qualquer reação. No entanto pensou: «Conheço este rosto de algum lado».
Depois da hesitação inicial Patrícia avançou e fez a apresentação. Foi uma
prova excecional!
«Espero que a Patrícia publique a sua tese e
eu terei muito gosto em ajudar no processo.» Disse Pedro.
Terminada
a prova Patrícia pediu para falar com Pedro durante cinco minutos. A empatia
entre os dois era grande, mas foi com surpresa que ele absorveu o significado
do que ela acabava de lhe transmitir. Agora ele percebia a razão do rosto lhe
ser familiar. O pai tinha uma fotografia dela no escritório. Não resistiu. Abraçou-a
e foi abraçado. As pernas de Patrícia tremiam tal era o nervosismo, a excitação
e a emoção.
«Tio!» exclamou.
«Se não te importas preferia que me chamasses
Pedro. Mudando de assunto: Tens que conhecer o teu avô.»
Depois
de algumas horas de partilha do passado e de muita emoção, com algumas lágrimas
à mistura, combinaram encontrar-se nesse mesmo dia. Pedro pediu ao pai para ir
ao escritório, ao fim do dia, dizendo que tinha um assunto sobre o qual precisava
de lhe falar. Patrícia entrou sem fazer ideia que o avô já lá estava. Estacou.
Ao ver que ninguém avançava Filipe levantou a cabeça. As mãos começaram a
tremer e não conseguiu levantar-se da cadeira.
«Avô. Eu sou a Patrícia.»
«Sei muito bem quem tu és.» Disse virando a
fotografia dela, que estava sobre a secretária.
A
emoção tinha tomado conta deles. Sem pronunciar mais nenhuma palavra
abraçaram-se. Sabiam tanto da vida um do outro que era como se sempre se
tivessem conhecido. Durante vários minutos deixaram a emoção transformar-se em
lágrimas. Sentados, em frente um do outro, ele agarrava as mãos da neta e
acariciava-as.
«És ainda mais bonita que a tua avó.»
Patrícia
sorriu sem conseguir pronunciar uma palavra.
«Desculpa não ter sido o avô que tu merecias
ter.» Disse ele.
«Quem tem de pedir desculpas sou eu pelo que
a minha mãe e a minha avó te fizeram. Antes de morrer a avó contou a verdade. O
avô nunca agrediu a avó. Foi tudo um plano do irmão dela. Quando ela se
arrependeu era tarde demais.»
Filipe
ficou também a conhecer os detalhes sórdidos da história. Isso já não era
importante. Estava no passado e devia ficar lá. Aquilo que era importante era
encontrar a filha. Ele já tinha percebido que a neta era tão brilhante quanto o
filho. Era também uma mulher bonita, mas havia qualquer coisa que destoava na
imagem dela. Foi apenas quando ela partiu que ele percebeu o que era. As roupas
velhas e coçadas que ela usava. A família dela deveria estar a passar
dificuldades. Depois de se informar melhor percebeu que o pai tinha ficado
desempregado fazia um ano e que, apesar disso, mantiveram a filha na Católica.
Isso implicava outros sacrifícios. Será que havia segundas intenções na
aproximação de Patrícia? Pedro descansou o pai.
«Não acredito. No entanto, também não vejo
mal nenhum em ela tentar aproveitar a vantagem de ser da família.» Disse Pedro.
Filipe
ficou à espera do contacto de Patrícia. Quando recebeu a notícia de que a filha
não queria encontrar-se com ele ficou baralhado. No princípio pensou que ela
ainda estava envenenada pela mãe, mas quando se lembrou da história que
Patrícia contou ficou com a certeza que o motivo era outro. Depois de vários
encontros com a neta e com o filho, combinaram entre os três uma estratégia de
aproximação.
Patrícia
passava o natal com os pais pois não tinham outra família. Desde que perdera os
avós paternos e a avó materna que a ceia para além de simples era triste. A mãe
tornava-se reservada e quando falava era para recordar os natais de quando era
criança, com os pais. Como ela era feliz! Era quase sempre com a lágrima no
canto do olho que se recordava do Pai. Emocionava-se. Por dentro sofria por ter
sido a causa do seu afastamento. A mãe sempre fora o seu ídolo. Por isso,
quando soube a verdade ficou perdida! O marido era o seu pilar, mas quando
ficou desempregado as coisas complicaram-se. Investiram tudo na filha e ela
retribuía-lhes, com desempenho e com carinho. Existia muito amor entre eles mas
não eram uma família feliz.
Tinham
discutido muitas vezes se filha e pai se deviam reconciliar. A posição de Marta
era inflexível.
«Eu não tenho coragem de enfrentar o meu pai
sabendo que foi o meu testemunho que o afastou de mim. Para além disso ele vai
pensar que o estou a fazer por causa do dinheiro.»
Isso
colocou um ponto final na discussão. O marido era dez anos mais velho e apesar
da grande experiencia e excelentes qualificações, não tinha conseguido voltar
ao mercado de trabalho. Viviam portanto um situação complicada que os afetava a
todos em termos económicos em psicológicos, fundamentalmente a ele.
Enquanto
os pais preparavam a ceia de natal Patrícia arranjou a mesa. O centro era muito
bonito. Ela tinha muito jeito para os trabalhos manuais, mas nesse ano
esmerou-se. O jantar seria às oito por isso ainda tinham algum tempo. A campainha
da porta tocou. Patrícia puxou o pai pelo braço e disse:
«Mãe vê quem é, que eu preciso que o pai me
ajude numa coisa?»
O
pai olhou para ela sem perceber. O dedo nos lábios de Patrícia disse tudo. Foi
com a ansiedade estampada no rosto que se colocaram atrás de Marta sem que ela
o percebesse, enquanto esta abria a porta.
«Olá filha.»
Marta
ficou sem reação. O pai estava na ombreira da porta. O rosto tinha ganho
algumas rugas, os cabelos eram grisalhos, mas o olhar mantinha a energia de
outrora. Aquela energia, aquela força que tanta falta lhe tinha feito. Ela era
a culpada disso. Sem forças para aguentar de pé a emoção caiu de joelhos e
abraçou as pernas do pai.
«Desculpa pai. Desculpa…» Disse com uma voz
embargada e chorando copiosamente.
Nenhum
dos presentes foi imune aquela cena e todos se emocionaram. Filipe agarrou a
filha, gentilmente, pelos braços e, com todo o cuidado do mundo, levantou-a e
abraçou-a. Não eram necessárias palavras os gestos falavam por si. Nem sequer
eram possíveis tal era a forma copiosa como os dois choravam. Patrícia foi a
primeira a reagir e levou os dois para a sala. O jantar não podia esperar pelo
que foi com o pai e o tio tratar do assunto. Quando as palavras conseguiram
sobrepor-se à emoção eles desabafaram. Confessaram as suas culpas, a sua
saudade e finalmente o seu amor.
O
tradicional jantar de bacalhau com couves e ovo, foi o melhor jantar de natal
que qualquer um deles teve. A família estava toda reunida e em paz. A família,
finalmente, transbordava amor e felicidade.
Era natal, mas não era um natal qualquer, era o Natal em que o pai veio
à ceia de natal.
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