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O PEDINTE



 O PEDINTE

O desconhecido aproxima-se de mim. São oito e vinte da manhã. A rua está quase deserta. Os meus sentidos ficam em alerta. Ao ombro carrego a mochila da ginástica, na mão esquerda a pasta e na direita o guarda-chuva aberto. A chuva cai impiedosamente. O guarda-chuva é enorme. Tão grande que o desconhecido se abriga nele. Está a dez centímetros de mim. O primeiro instinto é de me afastar e o deixar à chuva. Resisto ao medo que me invade o peito e aguardo. Ele é ligeiramente mais alto do que eu, cabelos grisalhos, a barba impecavelmente feita e um rosto sereno. Está perfeitamente apresentável. À distância que está de mim é fácil apontar-me uma arma branca ou de fogo e exigir aquilo que quiser. Aposto que nenhum dos escassos passantes se aperceberia de nada, tal é a intimidade da cena criada pelo guarda-chuva que nos protege. Ele olha-me nos olhos. Aguento o olhar. As minhas pernas tremem mas procuro aparentar estar calmo.
«Bom dia.»
«Bom dia.» Respondo.
O desconhecido pede desculpa pela abordagem. A história é simples. Era suposto ele estar a caminho do empreendimento Palmela Village para trabalhar, mas o colega que era suposto levá-lo deixou-o pendurado e necessita dinheiro para o transporte. Ao perceber o meu receio tranquiliza-me.
«Não sou nenhum sem-abrigo.»
Como se isso servisse de grande conforto! Costumo dar ajudas aos sem-abrigo e nunca nenhum me fez mal.
«Sou transmontano.»
Bingo! Eu também sou transmontano. Aquela origem comum funciona como um suavizador da situação. A tensão reduz-se significativamente. Mentalmente visualizo que na carteira apenas tenho dez euros. Definitivamente não lhe vou dar dez euros. Meto a mão ao bolso e tiro uma data de moedas de valor baixo. No total não somam dois euros.
«É tudo o que tenho.» Digo.
«Para o senhor pode ser pouco mas para mim é uma grande ajuda. Muito obrigado e que Deus lhe pague.»
Parou de chover. O homem afasta-se e eu sigo o meu caminho. Sinto-me leve. Sorrio do meu sentimento. «Estou duplamente leve. No bolso e no coração.» Penso.
Passado o momento de tensão e medo relaxo e fico contente por ter parado e ajudado aquele desconhecido. Aquilo que me contou pode não passar de uma história (O Google diz que o Palmela Village existe!), mas o importante é que ajudei alguém. O sentimento faz-me sentir tão bem que parece que flutuo sobre a calçada.
Tenham um bom dia!

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