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SONHAR



Podemos não ter nada, mas os sonhos continuam a ser nossos!

SONHAR

Os laivos da aurora anunciam o amanhecer. A noite fria entorpeceu-lhe os músculos. Os ténues raios de sol são promessas de calor que o vento gélido desmente. «Pelo menos hoje parece que não vai chover!» Pensa. O chão da arcada, que lhe serviu de teto, está gelado. Com gestos lentos, arruma os cartões e as mantas, tudo acomodado num denso rolo que coloca às costas. As luvas, já gastas nas pontas dos dedos, o gorro enfiado até às orelhas, o casaco velho e roto, sobre várias camisolas, são as armas que usa para combater o frio. O vento ignora tudo isso e descobre forma de lhe tocar a pele. Desconforto! Toca a andar! O frio vai desaparecer… A primeira tarefa do dia é beber algo quente. Com a casa às costas, desgrenhado e com a barba por fazer estende a mão. Recebe a indiferença dos passantes. Essa indiferença que não lhe é indiferente, mas à qual está habituado, doí-lhe mais do que nos outros dias. «Preciso mesmo de comer!» Pensa.

Todos passam sem olhar. Jovens ou velhos, dentro dos seus fatos, com a gravata a aconchegar o pescoço e o sobretudo de gola levantada, apressam o passo. O apelo da mão estendida fica sem resposta. As empregadas terminam a limpeza da manhã nos escritórios mesmo ao lado. A mulher negra, de idade madura e porte elegante, para ao lado dele. Milagre! Enche-lhe o copo e a vida. Café com leite a ferver…
«Obrigado.» Em tom sumido, embaraçado...
A senhora estende-lhe um saco de papel com algo.
«O que! Uma carcaça!?»   
«Sim. Era o meu pequeno-almoço.»
Levanta a cabeça, os olhos humedecem-se e agradecem também. 

Vagueia pela cidade pedindo aqui e ali. Move-se com lentidão, o peso que carrega e a lesão na perna assim o ditam. Umas moedas a estacionar carros, mais umas a arrumar lixo, pagam a garrafa de água ardente. Aquece-o e sustenta-lhe o vício! Ao fim do dia regressa a “casa” com o álcool a queimar-lhe o estômago vazio. A carrinha para à sua frente e as portas do paraíso abrem-se de par em par. Sopa de carne, quente, pão e algumas guloseimas. Uma refeição de sonho! No momento da separação, um brinde! Um saco cama velho: promessa de uma noite sem frio. São os anjos da noite! Enrolado nas mantas, dentro do saco cama e coberto de caixas de cartão sonha. Sonha da mesma forma que um príncipe!

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