UMA
GOTA DE CHUVA
A
massa de ar frio avançava com lentidão. Não tinha pressa, vagueava pelos céus
sem destino. Subitamente sentiu que ganhava altitude. «O que se passa?» Pensou.
Quando olhou para baixo percebeu o que lhe tinha acontecido. O choque com o ar
quente fê-la subir de forma vertiginosa. A nuvem adensou-se, tornando-se negra
como o breu. O seu seio agitou-se e começou a dividir-se em pequenas
partículas. Estava prestes a tornar-se o berço de milhões de pequenas gotas.
Era a condensação! A agitação era enorme. Os milhões de gostas disputavam entre
si a primazia de ser a primeira a saltar. Todas elas tinham um sonho: dar um
segundo salto. Um sonho baseado numa lenda muito antiga. Contava a lenda que
uma gota que tinha voltado a evaporar-se e saltara pela segunda vez sob a forma
de granizo e uma terceira, como floco de neve. Os locais por onde havia passado
e as aventuras vividas povoavam o imaginário de todas as gotas. Abriram-se as
comportas. Os milhões de gotas, de vários tamanhos e formatos distintos,
saltaram para o abismo. Era um mergulho fantástico! Não bastava deixar-se cair,
na esperança de se juntar ao caudal de água que corria pelas ruas. Era
necessário ter a dimensão correta: para não se evaporar na queda, evitar o
choque com outras gotas: para não crescer demasiado e implodir e cair no sítio
certo. Enfim, era toda uma mistura entre a sorte e a arte de saber cair, que
era como quem diz: saber viver.
Balão
era uma gota sonhadora. Ao contrário das outras ignorou o reboliço e acordou
tarde. Espreguiçou-se e ficou a ver passar as irmãs que se precipitavam no vácuo.
«Que aborrecimento. Porque não posso viajar com a nuvem e admirar o mundo,
visto cá de cima?» Interrogou-se. Fechou os olhos e imaginou-se sentada, num
novelo de algodão a viajar, admirando a paisagem. Abriu os olhos sobressaltada.
Um raio tinha passado mesmo ao seu lado e o trovão ecoou pelos céus, fazendo
estremecer a nuvem. As nuvens foram-se acumulando, lançando sobre a terra uma
torrente ininterrupta de gotas de água. Todas discordavam da atitude de Balão, expressando
essa discordância das mais variadas formas.
Nada
fazia Balão mudar de ideias. Ela via a vida de uma forma diferente. Sonhava como
todas as irmãs e amigas sonhavam, só que os seus sonhos eram diferentes. Ela
não queria “desperdiçar” a vida juntando-se a uma enxurrada lamacenta ou cheia
de lixo e dejetos, enfiar-se por uma conduta e ir perder-se na imensidão do mar.
Ela queria que a sua vida tivesse um significado próprio. Balão queria fazer a
diferença. Nos seus sonhos ela desenhava a vida com belas cores ou recitava a
vida em belas poesias. Ela era uma artista! Como podiam as irmãs pensar numa
segunda vida, ou seja na vida depois da vida, quando iam fundir-se com uma
torrente de água num rio ou num oceano? Isso não significava perder a sua
individualidade? Depois de fundidas deixavam de ser gotas e eram simplesmente
água. Ainda que essa água se evaporasse, as gotas que seriam geradas a partir
daí eram forçosamente diferentes. «Será que as gostas têm alma e que esta nunca
se funde, apesar do corpo fazer parte de um conjunto mais vasto?» Interrogou-se.
As outras gotas passavam por ela a grande velocidade!
«Vamos salta. Estás com medo?» Dizia uma.
«Se ficas aí vais desaparecer evaporada!»
Dizia outra.
«Qual artista qual que! Sempre foste uma
maricas!» Dizia uma terceira.
«Salta filha, não deves contrariar o
destino!». Dizia a nuvem.
As
nuvens começaram dissipar-se e restavam apenas meia dúzia de gotas. Estava na
altura de saltar. Seguiria o exemplo dos avós, dos pais e das irmãs, mas,
apesar das críticas, escolheria o seu próprio caminho.
Balão
era uma gota um pouco maior que a maioria das irmãs. Quando saltou já eram
poucas as gotas que caiam. Apesar disso, o risco de choque tinha aumentado
substancialmente, pois soprava um vento forte, que começava a afastar as nuvens
para longe. Olhou para cima: e o sol começava a espreitar entre as nuvens. «Tenho
de crescer para não desaparecer com a virga.»
Pensou. Balanceado o corpo, com a ajuda do vento, chocou com uma e com outra gota,
mais pequena e cresceu. Era a coalescência!
O seu tamanho era agora muito grande. Tão grande que corria o risco de se
transformar num paraquedas e implodir, transformando-se em várias gotas, de
pequena dimensão. A sua forma plana fez com que, em vez de cair apenas na
vertical, se deslocasse também na lateral, ajudada pelo vento. Já estava ao
nível dos prédios mais altos e a janela, do décimo andar, aproximava-se a uma
velocidade vertiginosa. Depois de tantos sonhos ia acaba esborrachada contra
uma vidraça! Aproveitou o amainar do vento para descer mais alguns metros e,
num gesto acrobático, saltou para dentro de um vaso da floreira. Foi absorvida
rapidamente pela terra e viu-se junto da raiz de um pé de salsa.
«Estava a ver que a chuva me passava toda ao
lado.» Disse a raiz da salsa, rejubilando.
Num
instante foi absorvida e desfeita em mil pedaços, espalhados ao longo da raiz,
do caule e das folhas da salsa. A salsa espreguiçou-se e, com a energia da gota
de chuva, esticou os ramos e cresceu mais um pouco. Estava verde escura,
brilhante e viçosa.
«Esta gota de chuva foi a minha salvação.»
Disse o pé de salsa.
A
gota de chuva já tinha desaparecido. Infelizmente não chegou a saber o que
tinha significado para a aquele pé de salsa. O seu espírito sonhador, a sua
criatividade e o querer ser diferente, deram os seus frutos, embora ela não
tivesse tido a oportunidade de os vivenciar.
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