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POR FAVOR TENHO FOME



POR FAVOR TENHO FOME

Joaquim descia a rua Palma, com passo apressado. Depois da conclusão das obras de renovação do Martim Moniz a rua tinha ficado diferente. Até o tipo de pessoas que a frequentavam tinha mudado.  Desligou. O pensamento voou para o negócio que tinha em mãos. Absorto nos seus pensamentos só se apercebeu da jovem quando ela lhe tocou o braço.
«Ajude-me por favor. Tenho fome!»
Joaquim olhou para a jovem e tentou avaliá-la. Devia ter entre os vinte e um e os vinte dois anos de idade. Era loira e tinha um corpo magro mas desengonçado e um rosto interessante, sem ser bonito. Os olhos azuis careciam de vida e demonstravam uma tristeza profunda. Joaquim estava parado em frente à jovem e, mesmo ao lado, estava uma daquelas tascas antigas, transformadas em café.  Servia refeições rápidas ou de prato, ao balcão ou à mesa. À primeira vista não lhe pareceu que a jovem estivesse com fome.
«Se estás com fome vamos àquele café. Comes o que quiseres que eu pago. Mas tens de comer à minha frente.» Disse Joaquim.
A jovem hesitou. Ficou corada. Hesitou novamente e finalmente decidiu-se.
«Eu quero é dinheiro para ir comer noutro lado.»
«Lamento mas não te vou dar dinheiro. Se estás mesmo com fome comes à minha frente.»
Nova hesitação.
«O dinheiro não é para comer. Eu preciso do dinheiro para comprar o bilhete de barco para ir para casa.»
Joaquim ignorou a alteração do motivo pelo qual ela queria o dinheiro. Estava disposto a ajudar aquela jovem.
«Eu vou contigo até ao barco e compro-te o bilhete.»
A jovem começou a ficar impaciente. Pelo canto do olho ele notou que se aproximavam dois homens, com os olhos postos nele e que o nervosismo dela aumentava à medida que eles se aproximavam. Pegando-lhe gentilmente no braço rodou, mudando de posição. Agora estava encostado à parede do café e podia observar os movimentos dos transeuntes. O dois homens pararam atónitos e olharam um para o outro, sem saber o que fazer. Quando um deles olhou para Joaquim este enfrentou o olhar e sorriu de forma irónica. O homem desviou o olhar assustado. Depois de conferenciarem entre si eles avançaram em direção a Joaquim. Ele sem deixar de olhar para eles levou a mão direita ao quadril esquerdo, de forma ostensiva e deixou-a ficar lá, escondida pela parca, como quem segura a coronha de uma pistola. Os homens estancaram. Joaquim esboçou outro sorriso irónico. Eles deram meia volta e desapareceram na esquina mais próxima.
«Quem eram aqueles homens?» Perguntou Joaquim, segurando o braço da jovem de forma firme.
«Não me faça mal por favor.»
«Quem são os homens?»
«Trabalham para o Vlad. Ele é o chefe duma quadrilha de extorsão. Eles vão voltar com mais homens.»
«O que é que eles têm a ver contigo?»
«Nada. Eles toleram a minha presença nesta zona e em contrapartida aproveitam-se da distração das pessoas que eu abordo para as roubar.»
«É este o tipo de vida que tu queres?»
«Já é um pouco tarde para mudar.»
Joaquim convenceu a jovem a ir com ele e passaram a tarde na esplanada de um café a conversar. Ela tinha ficado grávida de um homem casado. O pai da criança não quis saber dela e o pai dela colocou-a na rua. Ela veio para Lisboa e enquanto estava grávida viveu numa casa onde trabalhava como empregada doméstica. O patrão abusava dela e ela suportou tudo calada, em nome do filho. O sacrifício tinha sido em vão. No fim da gravidez perdeu o filho num aborto espontâneo. Depois disso denunciou o patrão e veio parar ao meio da rua. Fazia dois anos que sobrevivia graças a uma série de expedientes. Dormia numa pensão miserável e quando não tinha dinheiro para pagar o quarto, dormia com o dono da pensão. Quando se recusou a continuar a fazê-lo ele ficou com as coisas dela e ela teve de fugir.
«Se achas que eu acredito que me vais ajudar esquece. Se eu for contigo vais querer o mesmo que os outros homens: dormir comigo. Estou cansada disso. Prefiro pedir na rua a ter de pagar com o corpo o meu sustento. Isso tornou-se insuportável para mim.»
«Eu estou a precisar de uma empregada. Ofereço-te um teto para dormir, comida e um ordenado de quinhentos euros, para cuidares da minha casa.»
Joana, era esse o nome dela, ficou a olhar para Joaquim. Ele parecia sincero, mas sabia que se aceitasse corria um risco enorme, pois nada o impediria de abusar dela.  Ou pelo menos de tentar. Tomou uma decisão. Ela não podia ir buscar as suas coisas à pensão senão seria apanhada pelo dono. O pior que podia acontecer era o novo patrão tentar abusar dela. Se isso acontecesse partiria novamente.
«Vives sozinho?»
«Não. Tenho dois filhos já adultos. Tens que cuidar da casa, da roupa e fazer a comida. O horário de trabalho é das sete e trinta da manhã às onze da noite. Durante o dia vais ter muito tempo livre que depois se verá como vai ser ocupado.»
Era um horário de trabalho brutal! Ela não tinha outra alternativa. Aceitou.
A realidade que acabou por encontrar foi totalmente diferente. Na casa de Joaquim apenas se tomavam duas refeições por dia. O pequeno almoço e o jantar. Todos os dias, depois de preparar o pequeno almoço para os quatro, (ela também se sentava à mesa com eles) ia para a escola que Joaquim a obrigou a frequentar. Frequentou a escola para adultos até entrar na universidade, no curso de direito. Embora tivesse que cuidar da casa e tivesse que acordar às sete da manhã e trabalhasse e estudasse até à meia noite, era quase como se fizesse parte da família. Pelo menos era tratada e respeitada como tal.
Joana fazia trinta anos. Estávamos em Julho num dia quente de verão. Para além do aniversário celebrava-se também a licenciatura dela.
«Terás sempre um lugar nesta casa, mas acho que está na altura de eu arranjar uma empregada.» Disse Joaquim.
Havia muito tempo que ele estava apaixonado pela Joana, mas a diferença de idades entre os dois era enorme, por isso guardava o seu amor apenas para ele. Isso não era bem verdade, porque quer a Joana, quer os filhos e e as respetivas noras, sabiam do seu amor secreto.
«Eu tenho uma coisa muito importante para te dizer.» Disse Joana.
Joana confessou o seu amor por Joaquim. Confessou que durante muito tempo tinha pensado que era apenas gratidão. Tinha tido vários namorados mas acabara com todos porque nenhum se equiparava a ele. Ela estava verdadeiramente apaixonada por ele. Joaquim estava boquiaberto. Ele sonhara tantas vezes com aquele momento... Mas e a diferença de idades?
«Eu faço este ano cinquenta e oito anos. Tenho quase o dobro da tua idade. Podia ser teu pai.»
«Diz-me apenas uma coisa. Tu amas-me como filha ou como mulher?»
«Que Deus me perdoe, mas eu amo-te e desejo-te como mulher. Dava tudo o que tenho para que fosses minha!»
«Não precisas de dar nada a ninguém. Na verdade sou eu que estou em dívida. Tu devolveste-me a vida. Deste-me tudo o que tenho e ainda me ofereces o teu amor. Sim, eu estou em dívida para contigo, mas não é por isso que quero ser tua mulher. Eu quero-te como homem. Como o homem que és. Eu amo-te.»
Foi um beijo regado com lágrimas, mas apaixonado. Lágrimas de felicidade. Até os filhos e as noras estavam emocionados. Era um pouco estranho o pai viver com uma mulher tão nova, uma mulher da idade deles, mas eles já se tinham acostumado a ela. O pai iria ficar em boas mãos!

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