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A FESTA DO GALO



A FESTA DO GALO
O mês de Fevereiro já ia avançado e a Festa do Galo aproximava-se a passos largos. Era urgente definir quem iria contribuir para a mesma e de que forma. Eram as contribuições que determinavam o tamanho e o tipo do galo que seria oferecido ao mestre. A tradição ditava que as famílias se coletassem e que os alunos fossem, em grupo, levar as oferendas ao mestre. Este, receberia os alunos a quem oferecia um lanche farto e aceitaria as oferendas, que estes lhe levavam. O ano de 1969 não seria exceção.
Os alunos da quarta classe já se tinham autonomeado para a comissão e identificado o galo que seria oferecido. Sem grande surpresa o galo pertencia à família do chefe da comissão organizadora e o preço tinha sido definido por ele. Era a hora de cada família dizer o valor com que estava disponível para contribuir. Quando o valor coletado ultrapassava o definido para o galo, este podia ver-se subitamente na companhia de uma fêmea, um cesto de ovos ou ambos. Coincidência ou não, os alunos que pertenciam à comissão eram, simultaneamente, os mais velhos e os mais fracos. Licínio tinha alguma dificuldade em perceber a lógica da coisa. Os alunos que mais detestavam o mestre e que este mais castigava, eram os primeiros a contribuir e a instigar os outros a fazê-lo. Ele não nutria grande simpatia pelo mestre. Era um rebelde e as orelhas e cabeça recebiam, frequentemente, a visita da cana da índia, que se vergava sobe elas, com esmero, sempre que brincava com o parceiro do lado. No entanto, aquilo que mais detestava era ser obrigado a rever as contas dos colegas e a aquecer-lhes a palma da mão, com umas palmatoadas, quando estas estavam erradas. Já perdera a conta sobre o número de vezes que apagava as contas dos colegas, feitas sobre a lousa preta, e escrevia os números corretos. Detestava ter de lhes bater!
«Mãe vamos dar alguma coisa para a festa do galo?» Perguntou Licínio.
«Se eles comprarem um dos nossos galos, pelo mesmo preço que vão pagar pelo dos Ferreiras, não me importo de dar uma boa contribuição.»
Licínio entendeu perfeitamente o que a mãe queria dizer, mas não podia dar essa resposta aos colegas.
«Então não vamos dar nada?»
A mãe também entendia a situação do filho. Mas, por uma questão de princípio, não gostava de oferecer nada aos professores.
«Diz-lhes que não vais à festa.»
O assunto ficou resolvido. Apesar de não ser uma solução que lhe facilitasse a vida, era a que mais lhe agradava. Por coincidência, esse ano o número de alunos que não contribuiu para a festa foi elevado. Apesar de não ser o mais velho Licínio, que andava na terceira classe, aglutinou esse grupo à sua volta. Iriam preparar uma surpresa para o dia da festa. Falou-se muito, mas não deu em nada.
Um dos pilares do método de ensino, utilizado pelo mestre Paulo, era o castigo físico. Este era aplicado tanto para punir maus comportamentos, como a ignorância. Era um método que Licínio repudiava. Na sala existiam três instrumentos que eram utilizados para essa punição: uma cana da índia, com aproximadamente quatro metros e uma ponta fina, que se vergava sobres as cabeças e orelhas dos alunos, parecendo ter vontade própria. Um pedaço de cana da índia, com oitenta centímetros de comprimento e aproximadamente dez de diâmetro. Era usada para fustigar as nádegas, quando se estava no quadro. Finalmente, existia a Dona Rita, uma palmatória usada para aquecer as mãos, nas situações entendidas como mais graves. Licínio odiava os três, embora apenas fosse alvo da ponta da cana da índia, devido às constantes distrações. 
Na véspera da festa os instrumentos desapareceram da sala. Seriam enfeitados e entregues ao mestre pelos alunos que o iriam visitar. Licínio vivia numa quinta afastada da aldeia e fazia todos os dias, a pé,  o caminho até à escola. Nesse dia, sozinho com os seus pensamentos, fazia o caminho de regresso a casa. Caminhava apressado, com o pensamento absorto em considerações diversas. Gostava muito de aprender e por isso adorava a escola. Em casa sempre lhe transmitiram princípios de respeito pelos mais velhos, com especial relevo para os pais e professores. «Por que razão gosto tão pouco do mestre Paulo?» Pensava ele, como corolário de tanta reflexão. Tinha encontrado uma desculpa: era devido à forma como o mestre tratava os alunos menos dotados e à violência física que utilizava. Era pelo menos uma boa desculpa!
Tinha chegado o dia da festa. Apesar de não haver aulas, Licínio pediu aos pais para ir passar o dia com os colegas que não iam a casa do mestre Paulo. A comissão organizadora da festa reuniu os participantes no evento, no largo do recreio da escola e às onze horas partiram. Os instrumentos da tortura escolar tinham sido enfeitados a rigor. Dona Rita vestia uma longa saia colorida e os olhos tinham sido pintados de vermelho. A cana da índia envergava fitas de várias cores, que esvoaçavam ao vento, como os cabelos soltos de uma jovem adolescente. Ao pedaço de cana tinha-lhe cabido em sorte umas tiras de tecido grosso, assemelhando-se a um chicote usado para a flagelação. Os três membros da comissão brandiam, cada um o seu instrumento, dançando e correndo com eles, afastando-se por vezes do grupo. O grupo caminhava em grande animação, fazendo uma algazarra audível a alguma distância.
Quando chegassem junto ao ribeiro iriam perceber que não podiam utilizar as poldras para o atravessar, o que significava ter de descer, ao longo do rio, uns bons trezentos metros, para atravessar pela ponte. Isso iria aumentar o percurso de forma substancial. Os porta estandartes chegaram ao ribeiro com algum avanço em relação ao grupo. Ficaram parados, surpresos com a subida das águas. Só se aperceberam do cavaleiro quando este estava mesmo em cima deles. Os dois jovens, de cara tapada, que montavam o cavalo, aproveitaram a surpresa para lhes roubar os estandartes e, antes que eles reagissem, atravessaram o vau do rio a cavalo. O resto do grupo acudiu rapidamente, alertados pelos gritos dos líderes, mas nada podiam fazer. Os cavaleiros já haviam desaparecido na outra margem do rio.
Licínio e o primo, que vivia numa freguesia ao lado e era mais velho quatro anos que ele, tinham sido os autores da proeza.
«Esta brincadeira vai sair cara aos teus colegas. O mestre vai desancá-los quando perceber que eles não levam a Dona Rita
«O mestre não sabe quem retirou os instrumentos. Se eles não disserem nada, ele não vai poder castigar ninguém.»
«Ou então vai castigar a sala toda!»
Licínio encolheu os ombros. Não existia muita coisa que o professor pudesse fazer. Para além disso, como já tinha acontecido no passado, não demoraria mais de uma semana para que um dos alunos repusesse os instrumentos. Existia sempre alguém que queria estar nas boas graças do mestre!
Os alunos que iam levar os presentes ao mestre fizeram o resto da caminhada num tom bem menos animado. Estavam preocupados com a reação deste, mas, tal como Licínio tinha previsto, combinaram nem sequer falar no assunto. Iam fingir que não tinham sido eles a retirar os mesmos da sala de aula.
No dia seguinte, as aulas foram retomadas e o mestre ameaçou os alunos com represálias severas. Tinham duas alternativas para evitar o castigo: ou os instrumentos apareciam ou eles identificavam quem os tinha roubado. Não aconteceu nem uma coisa, nem outra. No entanto, tal como esperado, quinze dias depois, dois alunos trouxeram novos instrumentos: um trouxe a palmatória o outro as canas. Com eles regressaram os castigos físicos. Apesar disso, coincidência ou não, o mestre Paulo passou a recorrer a eles com maior parcimónia. Licínio nunca falou a ninguém da sua participação no desaparecimento dos instrumentos, mas não deixou passar em claro o facto de os castigos terem diminuído depois disso.
«Devíamos ter a coragem de fazer como os homens que vos roubaram a Dona Rita.» Disse Licínio.
«O que queres dizer com isso?»
«Devíamos fazer desaparecer os instrumentos cada vez que alguém trouxesse uns novos. Assim, o mestre nunca tinha com que nos castigar!»
Interiormente estavam todos de acordo com ele, mas ninguém se pronunciou sobre o assunto. O que é certo é que na semana seguinte os instrumentos desapareceram misteriosamente. Os novos instrumentos oferecidos pelos alunos tiveram a mesma sorte e ao terceiro desaparecimento o mestre Paulo desistiu. Infelizmente desistiu apenas dos instrumentos, mas o castigo físico manteve-se. Os novos métodos eram o puxão de orelhas, o beliscão e o suprassumo deles todos era: colocar os alunos ajoelhados, sobre grãos de milho, mas com as calças arregaçadas. Bem se podia dizer que, naquela escola, a aprendizagem era dolorosa!

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