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VOU PARA ANGOLA



VOU PARA ANGOLA


Fernando ainda não tinha tomado consciência do facto, mas a verdade é que já tinha tomado uma decisão. Era um homem metódico, por isso, antes de verbalizar aquilo que o seu subconsciente já sabia, deu todos os passos que entendeu serem necessários, para fundamentar a mesma. Era crucial que obtivesse o máximo de informação, pois, entendia que o processo de tomada de uma decisão, deve ser ancorado no máximo conhecimento das implicações da mesma. O primeiro passo, foi conversar com a mulher. Digamos que não foi uma conversa fácil!
«Nós levamos uma vida desgraçada, Idalina. Trabalhamos de sol a sol e no fim do ano nunca sobra nada. Nem tempo temos para nós!»
«Não sei de que te queixas. Eu estou sempre a teu lado. Esta é a nossa vida. Sabes que viver da agricultura não é fácil. No entanto, é bem pior para os que têm de trabalhar por conta de outrem!»
«Eu sei mulher! Mas eu quero mais. Eu quero dar aos nossos filhos a oportunidade de terem mais. A oportunidade que nem tu nem eu tivemos!»
«Eu percebo. Também eu gostaria de lhes dar asas. Mas faz um exercício de consciência e diz-me, com honestidade: fazes isto por eles ou és tu quem quer voar?»
Fernando ficou calado por alguns instantes. A mulher conhecia-o muito bem. Ela não punha em causa o amor dele pelos filhos, mas questionava a sua verdadeira motivação. A mulher tinha razão. Ele sentia-se preso. Precisava de conhecer, pelo menos em parte, o mundo que via nas notícias. Precisava de viver nos locais sobre os quais lia, com tanta avidez: precisava de ganhar asas!
«Talvez tenhas razão. Talvez os nossos filhos sejam apenas uma desculpa. Mas a verdade é que, partindo, estou a garantir-lhes um futuro melhor.»
«Isso é tudo muito bonito, mas eu é que fico aqui, com cinco filhos nos braços e a lavoura para governar. Não te esqueças que a mais nova tem apenas dois anos e o mais velho tem sete. São cinco crianças!» Disse ela, com a emoção à flor da pele.
Vê-la assim quebrou-lhe a vontade. Calaram-se. Ele virou-se para o lado e fingiu adormecer. Ela ficou de olhos abertos a olhar o teto e a ouvir a respiração regular do marido. Conhecia-o bem demais. Ele preparava-se para partir novamente. Ela nem tinha tido coragem de lhe perguntar para onde iria. Tinha receio de o ouvir pronunciar o nome do país. Era como se depois de pronunciado o nome, a partida se tonasse inevitável. Idalina mal pregou olho a noite toda. Tinha quarenta anos e estava no apogeu da sua vida, mas nem isso, aliado ao facto de ser uma força da natureza, impediram que se levantasse com um ar cansado e abatido. Dois dias depois, Fernando foi à cidade informar-se sobre tudo o que precisava saber para ir para Angola. A admissão na Guarda Rural tinha como requisito prévio ter cumprido o serviço militar, assim, ele preenchia todas as condições. A quarta classe de adultos era um extra, que fazia dele um candidato perfeito.
Fernando trouxe todos os papéis para casa já preenchidos. Apenas precisava de os assinar e entregar, mas ele não queria fazer isso antes de ter uma conversa com a mulher sobre o assunto. No fim do jantar decidiu abordar o tema.
«A terra não consegue dar-nos aquilo que precisamos. Eu vou emigrar outra vez.» Disse ele.
«Tu não gostaste nem da França nem da Suíça. Para onde vais desta vez?»
«Vou para Angola.»
«Para Angola! Fazer o que?»
«Vou dar proteção aos fazendeiros.» Disse ele, procurando suavizar as coisas.
«Vais para a guerra, queres tu dizer!»
«É verdade que existe a possibilidade de confronto, mas eu não vou combater como a tropa. Apenas vou estar numa fazenda de café, muito perto de Luanda e só em caso de ataque é que serei envolvido no conflito. Vais ver que, ao fim de um ano de lá estar, ainda nem sequer dei um tiro!» Disse ele, em tom brincalhão.
Idalina refugiou-se no quarto desfeita em lágrimas. Afinal era pior do que ela imaginara. Ele ia para a guerra e ela ficava ali, com o coração nas mãos, à espera de receber uma carta, a lamentar a morte dele! Maldita a hora em que se tinha casado! Fernando tentou tudo para acalmar a mulher, mas foi em vão. Ela chorou até adormecer. No dia seguinte, acordou tarde e já ele se tinha levantado. Fernando estava sentado à mesa, na cozinha, à espera que a família despertasse. Idalina chegou ao pé dele por volta das nove horas e, pouco depois, acordaram os filhos. As crianças beberam um copo de leite simples e comeram uma sopa, depois foram todos brincar para o exterior.
«Olha, eu já assinei os papéis e vou lá entregá-los hoje.»
Fernando pronunciou as palavras num tom calmo, mas firme. A sua decisão estava tomada. Mas queria evitar uma discussão todo o custo. Idalina era uma mulher bastante calma e submissa, que desde o dia do casamento tinha entregue, ao marido, o governo dos negócios da família, ficando ela com o governo da casa. Assim, depois de uma primeira reação mais impulsiva, ela aceitou a decisão do marido. Era tempo de planear a partida dele.
«Quando será a partida?»
«A próxima incorporação só terá lugar em Novembro. Isso vai dar tempo para terminar as colheitas e preparar o inverno.»
«Pois, o pior será para o ano que vem!»
«Vou falar com o João Rufino para ver se ele faz o trabalho mais regular. Quando forem precisos mais homens ele também pode providenciá-los.»
«Está bem. Deixa estar que eu cá me governo.»
Era o tipo de resposta que encerrava uma discussão deixando no ar um certo nível de descontentamento, mas ele sabia que não valia a pena continuar. Fernando levantou-se e foi tratar de toda a papelada. Depois de feitos os exames médicos, o processo ficou concluído. Nessa altura, ele ficou a saber exatamente o valor que ia receber por mês. Considerando o salário base e todos os restantes subsídios, receberia dez contos de reis. Era um ordenado principesco. Um homem, trabalhando de sol a sol, todos os dias do mês, podia ganhar, na agricultura, mil e quinhentos escudos e o cunhado, que era subchefe dos correios, em Vila Real, ganhava quatro contos de reis. O ordenado era uma boa razão para a sua partida.
O resto do verão decorreu normalmente, mas entre o casal existia uma barreira invisível que parecia separá-los, como se quisessem tonar a partida mais simples, antecipando as suas consequências. No entanto, quando o dia da partida ficou mais próximo eles mudaram radicalmente. Entregaram-se um ao outro todos os dias e mais do que uma vez, como se quisessem compensar todos os dias que iriam ficar longe um do outro. Entregaram-se fisicamente, mas também emocionalmente e a seguir ao sexo vinham as declarações de amor. Um amor profundo, generoso e eterno. Fernando partiu acompanhado de um outro homem lá da aldeia, que também decidiu ir. Pelas onze horas a carrinha militar parou à porta e Fernando despediu-se da mulher e dos filhos e foi embora sem olhar para trás. Era mais fácil assim.
O almoço, nesse dia, foi a pior refeição que a família teve por aquela altura. Idalina fazia um esforço para não chorar e os filhos olhavam para o lugar do pai, vazio e faziam dezenas de perguntas, às quais ela não sabia responder. Para esconder as lágrimas foi arrumar as malas que ele tinha desarrumado, subindo numa cadeira para as colocar em cima do guarda-fatos. Teria primeiro de arrumar o espaço para estas caberem. Os papéis voaram para o chão sem que ela se apercebesse que ali estavam. Idalina desceu da cadeira, apanhou os papéis, ordenou as folhas e começou a ler. A meio da primeira página não conseguiu conter as lágrimas. Fernando tinha enchido três folhas com quadras, relatando factos da vida deles onde a enaltecia e declarava o seu amor por ela. Era, em simultâneo, uma despedida e uma declaração de amor, a mais bela que ele alguma vez lhe tinha feito.

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