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IGNORÂNCIA


IGNORÂNCIA
  
O café tinha meia dúzia de mesas ocupadas. As seis jovens deram de imediato nas vistas. Para além de trazerem vestida a camisola dos Navigators, tinham uma silhueta agradável e vestiam-se de forma provocante. A minissaia curta mostrava as pernas até ao meio da coxa e a blusa justa, evidenciava uns pares de seios redondos e volumosos. Quando passaram por ele olharam-no, segredaram algo e riram-se. Uma delas piscou-lhe o olho. «Está no papo!» Pensou o jovem. Levantou-se, evidenciando uma estatura elevada e maciça, encheu o peito e avançou. A camisa aberta mostrava peitorais trabalhados, onde uma corrente de ouro fazia balançar uma medalha de tamanho desproporcional. A camisa era usada como uma bandeira: colarinho levantado e as mangas arregaçadas. Os jeans elásticos e umas botas de cowboy, complementavam a indumentária. 
«Olá. Podes parar de me chamar. Já aqui estou.» Disse ele, encostando-se ao balcão, ao lado da ruiva que lhe tinha piscado o olho.
Ela olhou-o perplexa, mas rapidamente percebeu o que se passava. Sorriu indulgente com a tirada .
«Isso dos Navigators não é uma marca de papel?»
Ela ignorou a insinuação e respondeu:
«É um clube de futebol americano. Sabes o que é isso?»
Leandro não fazia a mínima ideia do que era. Futebol para ele começava e acabava no Benfica. Para além disso os americanos não eram grande coisa nesse desporto. «Como se atrevem a chamar-lhe futebol americano?» Pensou.
«Claro que sei!» Disse, com convicção.
A equipa encheu por completo o café. Leandro, o jovem da camisa aberta, arregalou os olhos ao ver-se rodeado pelo grupo. Era um grupo muito atlético, embora alguns fossem bastante gordos, o que lhe pareceu estranho, para uma equipa de futebol. O centro das atenções do grupo era um jovem, alto e franzino, mas, apesar disso, musculado, a quem as moças também dedicaram a sua atenção. Leandro sentiu-se defraudado. Como é que elas podiam prestar mais atenção a um “lingrinhas” quando estava ali ele! O grupo não era hostil e ele avançou, mais uma vez, de peito feito.
«Vocês jogam futebol?» Perguntou, em voz alta.
A pergunta não mereceu qualquer resposta, mas fez com que trinta rostos se voltassem na sua direção, olhando-o com expectativa e curiosidade. Leandro delirou. Já tinha conseguido a atenção deles, agora só tinha que demonstrar a sua superioridade, em relação ao “lingrinhas”.
«Já vi que és o herói da equipa. Porquê, jogas bem?»
«Sou QB.» Respondeu o jogador, com simplicidade.
Leandro soltou uma gargalhada contida. Não queria hostilizar o grupo!
«Eu quando me dedico a qualquer coisa nunca me dou por satisfeito em ser “Quanto Baste”. Eu tenho de ser o melhor!» Disse com um ar de superioridade.
O grupo olhou-o de forma estranha e depois explodiu numa gargalhada sonora. As moças apontavam-lhe o dedo e riam a bandeiras despregadas. Leandro, apesar da sua estatura, começou a sentir-se pequenino. Não percebia o que tinha dito de errado.
«Não entendo…» Balbuciou Leandro.
Um dos jogadores, o mais atlético, aproximou-se dele, com um sorriso irónico e disse.
«Não entendes porque não percebes nada de futebol americano. Estavas para aí dar palpites, mas é um ignorante!»
Aquelas palavras foram uma machadada no seu ego. Olhou em volta e o sorriso de gozo estava espelhado em todos os rostos, inclusive no das moças. O jovem franzino colocou-lhe uma mão no ombro, num gesto que era um misto de condescendência e simpatia.
«Mano, eu jogo na posição de Quarterback. Na linguagem do futebol americano essa posição é designada por QB.»
Leandro desconhecia o que era um Quarterback, mas pelo menos ficara a saber que, no futebol americano, QB era uma posição e não uma expressão. Que humilhação. Lembrou-se das palavras do pai, ditas e repetidas: «Esse teu convencimento, aliado à ignorância, ainda te vai dar muitos dissabores!» Afastou-se, discretamente, mas sentindo-se humilhado, enquanto o grupo ria à gargalhada. Não tinha a certeza que riam dele, mas sentiu o riso como uma pedrada na nuca. Maldita Ignorância!

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