A JORNALISTA | PARTE IV | CAPÍTULO 6 – A esposa
Ela apenas tinha falado ao seu advogado sobre os documentos que
guardava no local mais insuspeito. Apesar da insistência do causídico ela não o
tinha deixado sequer passar os olhos pelos papéis. Custava-lhe colocar uma
pedra sobre o casamento, sobretudo por que a pedra em causa representaria o
suicídio profissional do marido. Talvez valesse a pena fazer mais um esforço.
Depois da última conversa percebeu que tinha interpretado mal algumas atitudes
dele. Ele não a desprezava, mas, por mais que dissesse o contrário, também não
a amava. A verdade, é que ela nunca tinha precisado do amor dele, mas gostava
de sentir que ele estava ao seu lado e que podia contar com ele. Tinha sido
sempre um casamento de aparências. Era isso que ela queria manter. Faria isso
pelos seus filhos, mas por ela também.
Jair tinha ido trabalhar apesar de ser feriado. Embora ele não o
confessasse ela conseguia perceber que as coisas não estavam bem na empresa.
Ele tinha outros negócios, mas estava a tentar legitimar toda a sua atividade e,
para isso, ser CEO da sociedade de capital de risco era fundamental. Ela já
antecipava que tal pudesse acontecer, por isso tinha combinado um programa que
terminava às dezassete e decidiu fazer uma surpresa ao marido. Iria buscá-lo à
empresa e iriam jantar ao Restaurante do Hotel Sheraton.
O segurança de serviço olhou para ela com uma expressão de
espanto e atrapalhação. Ela ficou sem saber o que dizer. A verdade é que vinha
ali muito poucas vezes, mas isso também não era motivo para a sua presença
gerar aquela reação. Ele franqueou-lhe a entrada e enquanto ela subia ao
terceiro andar ligou ao senhor Lins. A chamada foi desligada por falta de
atendimento. O segurança não desistiu. Entretanto, a esposa, quando viu o
gabinete dele vazio, ligou para o segurança que lhe prometeu encontrar o marido.
Seguramente estaria noutro ponto do escritório. Ela poisou o telefone e
mentalmente atribuiu outro significado à expressão do segurança.
Finalmente o senhor Lins atendeu o telefone.
«Senhor Lins a sua esposa
está no seu gabinete à sua espera, pelo menos há quinze minutos»
«O que? Por que não me avisou logo?»
«Estou a ligar-lhe desde que ela passou a portaria.»
«Bolas! Diga-lhe que estou a ver uns documentos no palacete e
que irei ter com ela dentro de dez minutos.»
Jair estava com a amante no palacete e teve que a despachar. Ela
não ficou nada satisfeita, sobretudo depois de saber que era por causa da
esposa. Apesar de ela ser a amante, estava acostumada a que os homens despachassem as mulheres para ir ter com ela e não o contrário. A inversão dos papéis deixou-a
desconfortável. Deu uma olhadela ao espelho para identificar marcas. Estava
tudo bem. Vestiu-se à pressa, colocando a camisa a caminho de escritório, para
não se atrasar. Chegou ao gabinete sorridente e bem-disposto.
«Olá! A que devo a agradável surpresa?»
Ela gostou da receção, mas não do odor dele quando o beijou na
face.
«Estás com odor corporal!»
«O palacete não tem ar o condicionado ligado e eu tive que
revirar uma série de papéis...»
«Não tens colaboradores para fazerem isso por ti?»
«Sim, mas hoje não está cá ninguém!»
Ela quase sentiu pena dele. Um CEO a “lamber papel” num feriado.
As coisas deviam estar mesmo complicadas. Olhou para ele com mais atenção. Foi
aí que viu as manchas de batom no colarinho. Estendeu a mão para o rosto dele,
mas no último instante revirou-lhe o colarinho.
«Suponho que foram os papéis que deixaram o colarinho cheio de batom.»
Ele ficou tão atrapalhado que nem sabia o que dizer. A amante
tinha-lhe pregado uma partida. Ele tinha a certeza de que o batom dela não
deixava marca. Ela tinha manchado a camisa de propósito quando ele se virou
para calçar os sapatos. Era a sua vingança por ser trocada pela mulher. As
mulheres eram diabólicas!
«Deixa-me ver. Isto dever ter uma explicação qualquer. Será que
me cortei a fazer a barba?» Disse, olhando o espelho.
«Porque não reconheces que estavas com uma das tuas amantes no
palacete e foi por isso que não atendeste o telemóvel?»
«Porque não corresponde à verdade.» Disse ele, procurando tomar
as rédeas da conversa.
«Esse teu cheiro também não resulta do trabalho. Tem um perfume
de mulher à mistura. Vamos confessa.»
«Já te disse que estava a trabalhar!» Disse, exasperado!
«Se fosses verdadeiramente homem confessavas. Eu sei que tens
várias amantes. No entanto, preferia que tivesses a coragem para assumir os teus
atos. És um traidor, mas pior que tudo, é seres um traidor cobarde.»
Por instantes, ele teve a tentação de confessar tudo. Isso iria
tirar do peito aquele peso que tanto lhe custava a carregar. Não conseguiu.
Assumir a relação extraconjugal era demasiado para ele. Custava-lhe muito mais
que a própria traição. Dizê-lo significava assumir formalmente e isso era a
última coisa que ele não faria. Era uma sensação estranha. Ele não sentia desejo
pela mulher, embora o sentisse pelas outras, mas não conseguia afastar-se dela
e viver com qualquer uma das amantes. De certa forma ele gostava dela.
«Não faz muito sentido irmos jantar os dois. Eu vou-me embora.
Vou dormir a casa de uma amiga.»
«Espera! Não vás! Vamos conversar.»
«É melhor deixarmos a conversa para outro dia, para que nenhum
dos dois diga coisas de que se pode vir a arrepender.»
Era um argumento muito poderoso. Ele cedeu. Ela estava
aborrecida e uma boa noite de sono iria convencê-la a esquecer o incidente como
das outras vezes.
«Boa noite.» Disse ela.
«É melhor eu levar-te a casa da tua amiga.»
«Não te preocupes, eu vou de Uber.»
Jair ficou a olhar para ela. Partia com uma expressão fechada e
dura, ele ficou com o coração apertado. Aquela despedida parecia muito mais
definitiva do que as anteriores. Apesar de se procurar convencer de que ela
voltaria, a dúvida instalou-se. Depois daquele episódio não tinha vontade de
ficar no escritório por isso foi a um clube jantar. Era um clube privado onde
se podia pedir uma acompanhante. Ele precisava de desanuviar.
A mulher foi diretamente para a casa da amiga. No dia seguinte
retornaria a casa. Agora tinha a certeza que precisava de confrontar Jair com alguns factos! Primeiro, tinha de reunir com calma todas as provas que pudesse para dar
sentido aos documentos que já tinha. Ainda iria demorar algum tempo. Quando
tivesse tudo pronto e não tivesse dúvidas de que queria fazer uso da bomba, falaria
com o advogado para dar entrada da ação.
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