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A LOUSA


A LOUSA

O inverno em Vila Real era rigoroso e o vento tornava o guarda-chuva inútil: ignorava-o ou simplesmente o destruía. Luís estava farto das botas de borracha, porque lhe gelavam os pés e tinha calçado os socos. Os três centímetros da base de madeira, aos quais acresciam uma tira de pneu, permitiam-lhe passar pelas poças de água incólume. Abrandou ligeiramente o passo. Sentia-se enchouriçado dentro do fato impermeável e começava a transpirar. As calças largas cobriam os socos até à biqueira, o que era uma bênção, pois evitava que a água entrasse pelos atacadores. A sacola de pano, onde transportava os livros, o lanche e a lousa, tinha sido colocada a tiracolo, por baixo do casaco do impermeável, para não se molhar. O conjunto tornava o percurso, de dois quilómetros, feitos a pé e debaixo do temporal, um verdadeiro desafio. A alternativa era ficar em casa, mas a mãe era intransigente.
«O teu pai emigrou e eu sacrifico-me todos os dias para vos dar um futuro. Os estudos são a única ferramenta que vos podemos dar, por isso não podes faltar à escola.»
Aquelas palavras ficaram-lhe para o resto da vida. O pai costumava dizer de outra forma: «Vocês são os músicos da vida. Eu prometo dar-vos uma viola, mas o som que vão tirar dela, depende das unhas que tiverem para a tocar!» Luís acelerou o passo. Queria ter a sua viola, mas sobretudo enrijecer as unhas. O nariz e os lábios, fustigados pelo vento e pela chuva, estavam gelados. Para evitar a entrada da água o capuz fechava-se com um elástico, à volta do rosto, mas este ficava sujeito à intempérie.
Finalmente chegou à escola. Libertou-se do fato impermeável e sentiu um choque. Estava quente e ligeiramente transpirado e a sala estava gelada. O mestre, com a ajuda de alguns alunos, tinha acabado de acender a três braseiras, mas para se sentir algum calor tinha que se estar em cima delas. Uma ficaria debaixo da secretária do mestre e as outras duas seriam colocadas, uma em cada canto da sala, em frente à turma. A sala estava muito longe do nível mínimo de conforto.
A turma estava irrequieta devido ao frio. A sala comportava quatro classes, da primeira à quarta, organizadas por filas. Cada classe tinha duas filas, com exceção da quarta que tinha apenas uma, embora algumas não estivessem completamente preenchidas. Luís, tinha apenas oito anos e estava na terceira classe, embora fosse dos mais novos. O nível de reprovação era elevado, na maioria dos casos, porque os alunos não vinham às aulas. Os mais novos choramingavam e o mestre Paulo deixou-os juntar-se à volta de uma das braseiras. As outras classes foram colocadas a fazer contas. Luís resolveu prontamente a conta que o mestre tinha colocado no quadro e foi encarregado de verificar as dos colegas. A regra era simples se a conta estivesse errada, ele tinha de informar o mestre, que premiava o aluno com umas reguadas. Era sempre um castigo doloroso, mas com o frio que estava era uma autêntica tortura. Francisco olhou para o Luís, de forma suplicante, colocando as mãos nos sovacos, como se isso o protegesse das reguadas. Era um rapaz fraco de contas! Luís pegou na esponja, apagou a conta e escreveu, rapidamente, os números certos. Seguiu em frente. Nesse dia as contas estavam todas certas, mas o mestre não se incomodou. O que ele não queria era tirar os pés de cima da braseira. A meio da manhã tinha parado de chover, mas o frio tinha aumentado. O céu, cinzento, tornou-se progressivamente muito liso e o vento calou-se. Tinha descido sobre a aldeia um silêncio que não augurava coisa boa.
O mestre anunciou que era hora de almoço. Luís juntou-se ao grupo dos que viviam mais longe e tinham de se contentar com a merenda trazida de casa. Os que viviam perto iam a casa almoçar. Estava um frio de rachar! Nem as corridas os aqueciam. O mestre Paulo pediu-lhes para colocarem mais lenha nas braseiras e depois deixou-os ficar na sala. Francisco apareceu a correr e puxou Luís pelo braço, antes de este entrar.
«Contei à minha mãe o que fizeste e ela quer que venhas almoçar connosco.»
Luís ficou um pouco embaraçado. As instruções que tinha eram claras: não devia aceitar nada dos colegas que viviam nas imediações da escola. A mãe não gostava de ficar a dever favores a ninguém. Ele não entendia muito bem porquê, mas regras, eram regras. No entanto, naquele dia valores mais altos se alevantaram. Imaginou uma lareira a crepitar e um prato de sopa quentinha: foi quanto bastou para ele não resistir.
«Olha meu filho o segundo prato era à conta para nós, mas sopa podes comer a que quiseres.» Disse a mãe de Francisco.
Eram pessoas pobres e Luís percebeu, pelo olhar do Francisco, que o almoço tinha sido apenas sopa. Nem toda a gente podia comer como em sua casa. Apesar disso, partilhavam o pouco que tinham, com amor.
«Dona Isabel não se preocupe. Eu adoro sopa e o que quero mesmo é aquecer os pés.»
Ela colocou-lhe a mão na nuca e levou-o para junto da lareira. A verdade é que ele adorava sopa, mas a senhora não podia adivinhar e estava apenas agradecida pela delicadeza da criança. «É rebento de tronco são, é o que é!» Pensou Dona Isabel.
«Olha começou a nevar!» Exclamou Francisco, encostando o nariz à janela e deixando-a opaca com o bafo quente.
Estava na hora de ir para a escola. Luís agradeceu, vezes sem conta, a sopa e o calor da lareira, mas sobretudo o calor humano daquela família simples, que o tinha acolhido, ainda que por um curto período. Reconfortado, correu para a escola, atrás do Francisco, aproveitando a proteção dos beirais, para evitar os flocos de neve, que eram cada vez maiores e mais frequentes.
O mestre Paulo estava de pé junto à janela. Tinha arrastado a braseira para ali e ia alternando o pé que colocava no rebordo de madeira. Estava indeciso. Se a intensidade dos flocos aumentasse ele próprio iria ter dificuldades em regressar a casa. Eram trinta minutos a pé! Tinha sobretudo de pensar nos alunos que viviam mais longe e tinham de regressar a casa sozinhos. Foi até à porta olhar o céu, enquanto entravam os últimos alunos. O recreio estava coberto com uma fina camada de neve, que não impedia os movimentos. Decidiu que podiam continuar. A aula retomou o seu ritmo natural. O ruído das meninas a sair, em grande algazarra, da sala ao lado, assustou-o. Foi até à janela e viu que a neve cobria o solo com uma grossa camada. Os flocos eram enormes e caíam com uma intensidade brutal. Não tardava nada os caminhos iriam ficar intransitáveis. A professora das meninas tinha-se apercebido disso mais cedo.
«Oiçam todos. Vão para casa antes que a neve vos impeça de regressar. Se amanhã houver mais de dez centímetros de neve, não há aulas. Voltam na segunda-feira.»
Na verdade ele deveria ter tomado a decisão mais cedo, mas nada fazia prever que a neve se tornaria tão intensa.
Luís vestiu o fato impermeável, ajustou-o e fechou-o. Estava pronto para se pôr a caminho. Apesar de ser novo ele sabia muito bem o que tinha a fazer. Não podia parar por motivo nenhum, senão o frio tomaria conta dele. Para proteger o nariz e os lábios, usou o lenço de pano e prendeu-o na nuca. Para proteger as mãos, puxou o elástico dos braços para a ponta dos dedos e cerrou os punhos. Assim não tinham contacto com a neve. Esta caía com tal intensidade que a visibilidade não ia além dos cinco metros. A paisagem branca e silenciosa era, simultaneamente, bela e assustadora.
Ao fim de quinze minutos começou a sentir o efeito do frio.  Ele não estava vestido de forma enfrentar aquele tempo. Os pés, mas sobretudo as mãos, estavam gelados e começou a sentir os dedos doridos. «Tenho de continuar. Já falta pouco!» Dizia a si próprio. Pensou na mãe que devia estar preocupada e nos três irmãos mais novos. Nenhum deles podia vir em seu socorro. Acelerou o passo para ajudar o corpo a aquecer. O pior era as extremidades. Quando chegou a casa a mãe veio logo a correr e ajudou-o a liberta-se do impermeável. Luís correu para a lareira e estendeu as mãos. O grito de dor saiu-lhe de forma involuntária. A mãe acorreu preocupada.
«Não podes aquecer as mãos dessa forma. Calor em demasia provoca dores insuportáveis» Disse.
Tomou as mãos dele e esfregou-as gentilmente entre as suas. Depois pegou num pano de lã, aqueceu-o e enrolou as mãos do filho.
«Mantém as mãos perto da lareira, mas sem ser em cima do fogo. Elas precisam aquecer lentamente.»
Em seguida descalçou-o e colocou-lhe os pés em água morna, depois foi adicionado, lentamente, água quente. Quando os pés ficaram quentes ela secou-os e calçou-lhe umas meias de lã. Nessa altura, Luís lembrou-se que estava com fome. Foi quando a mãe soube que ele já estava quente. Apesar do frio que entrava pelas frestas das janelas de madeira ou por debaixo da porta, a casa pareceu-lhe o sítio mais acolhedor do mundo. Para isso bastava o olhar carinhoso da mãe.


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